Yusuf atravessava o mar tentando não pensar no passado.
Para trás ficava a guerra, para a frente, o futuro. Naquele pequeno bote iam,
também, mulheres grávidas, outros homens, crianças sem nenhum adulto
supervisionando. Vinham todos com esperança no futuro. A guerra empurrava todos
em direção ao futuro, era isso que fazia mover aquele barco sem velas, sem
remos. Tinha pago quase dois mil euros, fruto de muito sacrifício, para estar
ali, finalmente. Yusuf observava as crianças. A elas tinha-lhes sido dada a
dávida da vida, pois seus pais tinham se sacrificado por elas. Deviam estar
gratos por isso, mas eram demasiado jovens para o entender. Como todos os
adultos, ajudavam no cuidado dos menores, dando-lhes comida. O espirito de
entreajuda era nato entre eles. Menos para com os traficantes. Eles também não
ajudavam em nada, só pensavam neles mesmos. Tinham passado por uma tempestade e
perdido alguns dos que estavam no bote. Três crianças e uma mulher tinham se
perdido. Apenas uma criança era filho da mulher que se havia afogado. As outras
duas vinham só à boleia. Mas ninguém havia chorado a sua morte, não havia tempo
para isso. Todos se agarraram à ideia que eles estavam num lugar melhor. Os
mais pequenos perguntavam pelos amiguinhos. Apenas lhes respondiam que já
haviam chegado ao seu destino, e que os esperavam. Ao quinto dia avistaram um
barco de pesca. Cheios de sede, levantaram-se, abanaram os braços e gritaram.
Mas ninguém parecia ter reparado neles. Pouco depois, o barco partiu. As
crianças choravam. Tinham fome e sede. Aquele barco não estava preparado para
muito mais.
Veio a noite. E, com ela, a esperança. Quando muito já
dormiam, outros seguiam vigilantes. Quando deram por isso, um barco
aproximava-se. Era um barco que os vinha salvar. Yusuf, um dos vigilantes,
acordou os outros. Vinham salva-los. As crianças, algumas já quase perecendo de
sede, animaram-se com a notícia. Deixaram os adultos desconhecidos pegarem
neles e levarem-nos para o barco. De seguida, foram as grávidas. Uma delas
estava prestes a dar à luz. Foi de imediato organizado um canto para ela dar à
luz o mais confortável possível. Enquanto isso os outros adultos saiam por
outro canto, juntando-se a quem já estava no barco. Yusuf não entendia a língua
deles, só quando se lhe dirigiam em inglês. Agradeceu muito e aceitou os
alimentos que lhe davam. Estava não só sedento, como esfomeado. Mas deu,
primeiro, vez às crianças e, mais uma vez, ajudou-as. Como estavam sôfregos e
esfaimados. Mudou-lhes as roupas encharcadas e vestiu-lhes as secas que lhes
deram, tal como os outros adultos fizeram. O que seria daquelas crianças, a
partir dali? O que seria deles? Não podia ficar com nenhuma criança à sua
responsabilidade pois não tinha mulher, sequer. Não conseguiria mentir. Decerto
seriam bem tratados. Decerto encontrariam novas famílias. Eles, os adultos,
iriam para um campo de refugiados. Será que seriam bem tratados?
Passou uma semana. Depressa Yusuf se apercebeu da corrupção
que reinava naquele lugar. Tinha ido com esperança de um mundo melhor, mas
agora se desiludia. Havia muita prostituição, muitos roubos. Será que o país
inteiro seria assim? Não sabia. Sabia, apenas, que aquela ilha era assim. Tinha
de se safar como podia. Não via a hora de sair daquele lugar. Por sorte havia
mais iraquianos como ele, muçulmanos. Todos rezavam a Alá, agora que podiam.
Mesmo no chão despido, sem tapete, ajoelhavam-se e rezavam. Já não havia
crianças perdidas ali. Ali, todos tinham família. Os que não tinham família
tinham ido para instituições. Por vezes uma ou outra mãe perdia o filho. E
desenrolava-se uma longa busca, segundo o que tinham contado a Yusuf. Mas eram
quase sempre encontrados. Quase. Um ou outro escapava para o mundo negro do
tráfico humano.
Passaram seis semanas. Yusuf tinha conhecido uma jovem
mulher nigeriana por quem se havia apaixonado. Queriam se casar, apesar de ela
ser cristã e ele muçulmano. Mas, para ele, não havia diferença alguma. Sabia
que eram vistos com maus olhos, pois ela não usava a hijab. Mas ele não via mal
algum nisso. Até porque pensava dizer-lhe para a usar depois de se casarem. Por
enquanto o problema era outro. Queriam sair dali, tentar uma vida nova. Pediram
às autoridades para os libertarem na península principal. Para arranjarem
emprego e casa. Foi-lhes dito que a vida ainda era mais difícil fora dali, mas
iam atender ao seu pedido.
Duas semanas depois, estavam fora do acampamento de
refugiados. Mas não os libertaram, como pedido, na península de Itália, e sim
na ilha de Sicília, onde se encontrava o acampamento. Mas estavam fora dele, o
que já era bom. Tentaram arranjar trabalho. O único trabalho que Yusuf arranjou
foi como traficante. Mas não tinha outra hipótese, tinha de se alimentar.
Maria, a noiva, também conseguiu trabalho. Disse-lhe que era garçonete de bar num
clube noturno. O trabalho da noiva não lhe agradou, mas acabou por aceitá-lo.
As semanas passaram e, uma noite, Yusuf recebeu uma
chamada. Tinham prendido Maria. Sem saber do motivo, dirigiu-se à delegacia.
Com o tempo tinha se tornado drogado e, naquele momento estava a curtir uma
trip de heroína.
Chegado lá, ao ver as roupas dela, percebeu o motivo da
detenção: por ser prostituta. Tomado por uma raiva repentina, tentou bater em
Maria. Os policiais impediram-no. Nesse momento, aperceberam-se que havia algo
de errado com ele. Decidiram fazer-lhe um teste de despistagem a drogas, que
deu, obviamente, positivo.
Os dois foram presentes a juiz, separados. Aos dois foi
lhes dada a sentença de serem expatriados para os seus países de origem. Yusuf,
arrependido, pediu que não mandassem a noiva e ele separados. Mas o juiz não
lhe deu ouvidos.
Yusuf voltou ao Iraque, sem noiva. Estava certo que nunca
mais a iria ver…
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