quinta-feira, dezembro 13, 2018

A travessia e a desilusão


Yusuf atravessava o mar tentando não pensar no passado. Para trás ficava a guerra, para a frente, o futuro. Naquele pequeno bote iam, também, mulheres grávidas, outros homens, crianças sem nenhum adulto supervisionando. Vinham todos com esperança no futuro. A guerra empurrava todos em direção ao futuro, era isso que fazia mover aquele barco sem velas, sem remos. Tinha pago quase dois mil euros, fruto de muito sacrifício, para estar ali, finalmente. Yusuf observava as crianças. A elas tinha-lhes sido dada a dávida da vida, pois seus pais tinham se sacrificado por elas. Deviam estar gratos por isso, mas eram demasiado jovens para o entender. Como todos os adultos, ajudavam no cuidado dos menores, dando-lhes comida. O espirito de entreajuda era nato entre eles. Menos para com os traficantes. Eles também não ajudavam em nada, só pensavam neles mesmos. Tinham passado por uma tempestade e perdido alguns dos que estavam no bote. Três crianças e uma mulher tinham se perdido. Apenas uma criança era filho da mulher que se havia afogado. As outras duas vinham só à boleia. Mas ninguém havia chorado a sua morte, não havia tempo para isso. Todos se agarraram à ideia que eles estavam num lugar melhor. Os mais pequenos perguntavam pelos amiguinhos. Apenas lhes respondiam que já haviam chegado ao seu destino, e que os esperavam. Ao quinto dia avistaram um barco de pesca. Cheios de sede, levantaram-se, abanaram os braços e gritaram. Mas ninguém parecia ter reparado neles. Pouco depois, o barco partiu. As crianças choravam. Tinham fome e sede. Aquele barco não estava preparado para muito mais.

Veio a noite. E, com ela, a esperança. Quando muito já dormiam, outros seguiam vigilantes. Quando deram por isso, um barco aproximava-se. Era um barco que os vinha salvar. Yusuf, um dos vigilantes, acordou os outros. Vinham salva-los. As crianças, algumas já quase perecendo de sede, animaram-se com a notícia. Deixaram os adultos desconhecidos pegarem neles e levarem-nos para o barco. De seguida, foram as grávidas. Uma delas estava prestes a dar à luz. Foi de imediato organizado um canto para ela dar à luz o mais confortável possível. Enquanto isso os outros adultos saiam por outro canto, juntando-se a quem já estava no barco. Yusuf não entendia a língua deles, só quando se lhe dirigiam em inglês. Agradeceu muito e aceitou os alimentos que lhe davam. Estava não só sedento, como esfomeado. Mas deu, primeiro, vez às crianças e, mais uma vez, ajudou-as. Como estavam sôfregos e esfaimados. Mudou-lhes as roupas encharcadas e vestiu-lhes as secas que lhes deram, tal como os outros adultos fizeram. O que seria daquelas crianças, a partir dali? O que seria deles? Não podia ficar com nenhuma criança à sua responsabilidade pois não tinha mulher, sequer. Não conseguiria mentir. Decerto seriam bem tratados. Decerto encontrariam novas famílias. Eles, os adultos, iriam para um campo de refugiados. Será que seriam bem tratados?



Passou uma semana. Depressa Yusuf se apercebeu da corrupção que reinava naquele lugar. Tinha ido com esperança de um mundo melhor, mas agora se desiludia. Havia muita prostituição, muitos roubos. Será que o país inteiro seria assim? Não sabia. Sabia, apenas, que aquela ilha era assim. Tinha de se safar como podia. Não via a hora de sair daquele lugar. Por sorte havia mais iraquianos como ele, muçulmanos. Todos rezavam a Alá, agora que podiam. Mesmo no chão despido, sem tapete, ajoelhavam-se e rezavam. Já não havia crianças perdidas ali. Ali, todos tinham família. Os que não tinham família tinham ido para instituições. Por vezes uma ou outra mãe perdia o filho. E desenrolava-se uma longa busca, segundo o que tinham contado a Yusuf. Mas eram quase sempre encontrados. Quase. Um ou outro escapava para o mundo negro do tráfico humano.

Passaram seis semanas. Yusuf tinha conhecido uma jovem mulher nigeriana por quem se havia apaixonado. Queriam se casar, apesar de ela ser cristã e ele muçulmano. Mas, para ele, não havia diferença alguma. Sabia que eram vistos com maus olhos, pois ela não usava a hijab. Mas ele não via mal algum nisso. Até porque pensava dizer-lhe para a usar depois de se casarem. Por enquanto o problema era outro. Queriam sair dali, tentar uma vida nova. Pediram às autoridades para os libertarem na península principal. Para arranjarem emprego e casa. Foi-lhes dito que a vida ainda era mais difícil fora dali, mas iam atender ao seu pedido.

Duas semanas depois, estavam fora do acampamento de refugiados. Mas não os libertaram, como pedido, na península de Itália, e sim na ilha de Sicília, onde se encontrava o acampamento. Mas estavam fora dele, o que já era bom. Tentaram arranjar trabalho. O único trabalho que Yusuf arranjou foi como traficante. Mas não tinha outra hipótese, tinha de se alimentar. Maria, a noiva, também conseguiu trabalho. Disse-lhe que era garçonete de bar num clube noturno. O trabalho da noiva não lhe agradou, mas acabou por aceitá-lo.

As semanas passaram e, uma noite, Yusuf recebeu uma chamada. Tinham prendido Maria. Sem saber do motivo, dirigiu-se à delegacia. Com o tempo tinha se tornado drogado e, naquele momento estava a curtir uma trip de heroína.

Chegado lá, ao ver as roupas dela, percebeu o motivo da detenção: por ser prostituta. Tomado por uma raiva repentina, tentou bater em Maria. Os policiais impediram-no. Nesse momento, aperceberam-se que havia algo de errado com ele. Decidiram fazer-lhe um teste de despistagem a drogas, que deu, obviamente, positivo.

Os dois foram presentes a juiz, separados. Aos dois foi lhes dada a sentença de serem expatriados para os seus países de origem. Yusuf, arrependido, pediu que não mandassem a noiva e ele separados. Mas o juiz não lhe deu ouvidos.

Yusuf voltou ao Iraque, sem noiva. Estava certo que nunca mais a iria ver…

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