Lena era uma mulher, já feita, com muita inveja no coração.
Tinha inveja de tudo das suas amigas. Elas podiam comprar boas roupas, bons
perfumes. Lena não, tinha de desenrascar com o que tinha. Apesar de ter um
curso como elas, não o valorizava, pois não era o que ela pretendia
inicialmente. Não confessava a ninguém pois até ela tinha vergonha de o fazer.
Mas as amigas não se importavam com o seu aspeto um pouco mais ‘pobre’. Era o
interior, que pensavam conhecer, que admiravam. Mal elas sabiam…
- Boa tarde, Lena. – Disse Amélia.
- Boa tarde, Amélia. – Respondeu Lena.
- Então, que fazes?
- Olha, olhando as vitrines das lojas… Se tivesse dinheiro
para comprar aquela roupa…
- Olha, não te preocupes, estás bem assim. Queres sair logo
a noite?
- Não sei se dá, sou capaz de não ter roupa para usar.
- Está descansada, as tuas roupas são giríssimas. Ou queres
que te empreste algo?
Lena ficou pensativa.
- Olha, se não te importasses…
- Está bem, eu empresto. Tens mais ou menos o meu tamanho.
Já tenho a peça em vista. Depois passa lá por casa, à noite.
- Ok.
- E não te esqueças: manda toque antes de vir.
- Tudo bem. – Disse Lena.
Despediram-se e cada uma seguiu o seu caminho. Amélia não
compreendia porque Lena agia assim, se a sua roupa era tão gira. Espirrou.
Devia estar a gerar alguma constipação. Se continuasse assim, não sairia à
noite.
Lena sentiu-se feliz. Finalmente ia experimentar roupa de
marcas mais caras. Parece que já sentia o tecido na pele. Nem se apercebia de
quão vazia era. Ninguém se interessava por ela. Os pais, cansados, já não
faziam sacrifícios à sua custa. Lena vivia, praticamente, uma vida de
aparências. Mas não se importava. Endividava-se a comprar roupa mais ‘barata’,
mas nem se incomodava de abrir as cartas do crédito que lhe chegava a casa. ‘Um
dia serei rica.’, pensava ela. ‘Um dia não precisarei delas para nada, nem de
ninguém, só de mim mesma.’ Quão egoísta ela era. Pensava que, para subir na
vida, precisava de se vestir melhor.
Chegou a noite. Como combinado, mandou um toque a Amélia.
Já estava a sair com o carro, um Seat, dos mais baratos que havia (‘Maldita
sorte.’, pensou) quando recebeu uma mensagem de Amélia, dizendo que não ia sair
nem pretendia visitas. Estava doente. ‘Raios.’, pensou. ‘Que faço agora?’.
Pensou em ligar a outras amigas, mas elas também estavam fartas das conversas
de Lena dizer que não tinha roupa para vestir, que elas tinham tudo fino, etc.
Estava a perdê-las. Decidiu ir beber uma cerveja, sozinha, e voltar para casa.
E assim foi.
Não viu nenhuma das amigas dela no bar onde costumavam ir,
parecia que tinha tudo ficar em casa. Queria engatar, mas quem iria encantar
com aquelas roupas? Apenas os pobretanas. E ela não estava para se envolver com
alguém que poderia ter de sustentar, no futuro. Ela é que merecia ser
sustentada, não o inverso. Um ranhoso desses tentou aproximar-se dela. Ela
disse logo para ele se afastar, e foi-se embora. Foi quando viu, no
estacionamento, ele aproximar-se de um BMW alta cilindrada, que mudou de
opinião. Também ele mudara de opinião, pois levava uma bela loura pela mão. De
nada valia a Lena ir pedir para a levar a casa. Enfiou-se dentro do seu Seat
velho e partiu para casa. Chegada lá, foi se deitar.
No dia seguinte, acordou com as pancadas na porta. Parece
que já lá estavam a horas.
- Senhora Lena Cardoso? Abra a porta, se faz favor.
- Já vai… - Gritou Lena.
Abriu a porta. Admirou-se quando viu um homem acompanhado
de dois polícias.
- Viemos por parte do crédito. A senhora não efetua
pagamentos há três meses, estamos aqui para despejá-la. Esta casa é do banco
agora. Pegue nas suas coisas e saia.
- O quê? – Disse Lena.
Lena ficou em choque. Pediu que a deixassem vestir e
arranjar uma mala de roupa para levar. Não sabia para onde iria, talvez para
alguma amiga. Mas na rua não havia de ficar.
Saiu. Foi ter com Amélia. Lá chegada, contou-lhe o que se
tinha passado.
- Credo, rapariga. E que pensas fazer agora? – Perguntou
Amélia.
- Bem, se não te importasses…
- Não, está fora de questão. Não te quero a morar na minha
casa. Atenção, não te estou a abandonar, ainda. Mas porque não vais para casa
dos teus pais?
- Não sei se eles me recebem… - Mentiu Lena.
- Vai lá e faz as pazes com eles. Garanto-te que não te
deixaram na rua.
- Está bem… - Disse Lena.
Mesmo assim, após se ter despedido de Amélia, ligou a mais
algumas amigas, algumas nem as via desde a faculdade. Todas lhe disseram o
mesmo. Lamentavam a situação, mas não a queriam lá. Para tentar falar com os
pais. Lena, sem mais hipóteses, foi ter com os pais.
- Filha, há quanto tempo. Que é feito de ti? Porquê essa
mala? – Disse o pai.
- Olá pai. – Respondeu Lena.
E rapidamente o pôs a par do que se passava com ela. Os
pais acolheram-na, mas a mãe impôs uma contrapartida. A filha tinha de
contribuir para a casa. Era isso o que lhe tinha faltado, sentido de
responsabilidade. Lena não podia recusar. Feito o tratado, foram descansar,
pois já era tarde. Já tinham jantado, tinham discutido os termos do tratado ao
jantar.
O tempo passou-se e Lena parecia ter mudado. Mas continuava
sem efetuar os pagamentos do crédito, até que chegou uma carta a ameaçar
venderem em hasta publica a casa e conteúdo da casa dos pais. Só então eles se
aperceberam da gravidade da situação. Discutiram com Lena e obrigaram-na a ir
levantar o dinheiro, apesar de já ser de noite. A partir de então, eles
controlariam a vida de Lena, já que ela era parca em responsabilidades.
- E assim é. Vai te arranjar e ver da tua conta, já.
- Ok. – Respondeu Lena, sem ter como dar a volta à questão.
Lena foi ao multibanco mais próximo. Teve de ir a pé, pois
tinham lhe arrestado o automóvel. Estava escuro, a iluminação era fraca.
Parecia um cliché. Deu por algumas pessoas nas redondezas, pelo que não deveria
sentir medo. ‘Mas porquê esta inquietação?’, pensou Lena. Estava quase a
carregar no multibanco, quando se lembrou de telefonar aos pais, para irem ver
dela. Estava com medo. Mas eles não lhe ligaram, disseram para ela se
despachar. Lena assim fez. Retirou todo o dinheiro da conta e, quando ia a
caminho de casa, foi assaltada. Como uma desgraça nunca vem só, feriam-na no abdómem.
Deitada numa poça de sangue, telefonou à sua amiga Amélia, que nunca lhe chegou
a atender a chamada…
Lena não faleceu. Passaram um par de namorados que, ao
vê-la ali, chamou de imediato uma ambulância. Lena já estava no limite das suas
forças. Mas aquele casal nunca a deixou. Fizeram-na agarrar-se à vida. Só a
largaram quando os paramédicos chegaram. Eles fizeram tudo para a salvar,
falavam com ela enquanto a levavam para o hospital. Lena só pensava que merecia
aquilo, afinal era ela a culpada de toda a situação. Se não tivesse se atrasado
nos pagamentos, não teria de ir ao multibanco de noite.
Perguntaram-lhe pela família, quando chegou ao hospital.
Ela só conseguiu dizer: ‘Telemóvel…’, antes de desmaiar. Por sorte, tinha
ficado agarrada a ele, só o largando quando desmaiou. Viram os contactos dela e
pesquisaram pelos números dos pais. Quando os avisaram, eles ficaram alarmados.
Já tinham dado pela demora dela, mas nunca pensaram que tivesse sido vitima de
um assalto.
Chegaram ao hospital num ápice. Lá, foram informados do
estado de Lena.
- Ferida, mas estável. É tudo o que lhe posso dizer. –
Disse o médico.
Os pais de Lena tremiam, enervados. Mas nada podiam fazer.
Apenas podiam aguardar.
As horas passavam e nada. Até que o médico voltou.
- Senhor Doutor, como está a nossa filha? – Perguntou a mãe
de Lena.
- Bem, tenho boas notícias. Ela está salva.
- Ah, muito grato. – Disse o pai de Lena.
Os pais de Lena sentiam-se aliviados. Combinaram, entre si,
controlar a vida de Lena a partir de então. Não a voltariam a deixar sair
sozinha, fosse que hora fosse. A mãe estava na reforma, o que ajudava no plano.
A partir de então, a vida de Lena seria estritamente casa-trabalho-casa. Nada
mais. Lena nem imaginava a gaiola de ouro que estava a ser ‘construída’ para
si…
Passaram alguns dias e Lena foi autorizada a regressar a
casa, apesar de não poder se movimentar muito. Foi lá que foi informada dos
planos dos pais. Lena revoltou-se.
- Não, não me podem fazer isso. – Disse Lena.
- Podemos, sim. E vamos fazer. Sê coerente: tu não estás no
teu melhor. – Disse o pai.
- Não estou agora, mas vou melhorar. Vocês vão ver.
- Não, Lena. Já até avisamos o escritório de avogacia para
onde trabalhas. Nada de jantares de trabalho. Chega o final do dia, casa.
- Não, não podem fazer isso. Como o fizeram? Vocês estão a
destruir a minha vida.
- A tua vida é um castelo de cartas, está a desmoronar-se.
Sê simpática e obedece. De outra maneira, somos obrigados a largar-te. – Disse
o pai.
Lena não tinha escolha, teve de aceitar. Sentia-se presa,
não havia outra forma de o descrever, mas a sua vida, daí para a frente, seria
assim.
Em poucas semanas estava recuperada. Voltou ao trabalho,
onde lhe confrontaram sobre os seus erros.
- É uma sorte eu não a despedir. E tudo graças ao seu pai,
que teve o bom pensamento de nos visitar e avisar da sua situação. – Disse o
patrão.
- Peço desculpa… - Respondeu Lena.
- Desculpas aceites. Mas, a partir de agora, é como o seu
pai disse. Acabou o dia de trabalho, casa. Não a quero ver por aí. Francamente,
com o ordenado que recebe, como é capaz de contrair dívidas tão elevadas?
- Descontrolei-me…
- Pois não o faça mais, ou será despedida com justa causa.
Bom, agora que estamos conversados, ao trabalho.
Lena saiu do escritório do patrão e foi, primeiro, à casa
de banho, chorar. Andava muito sensível. Quase tinha morrido e parecia que
ninguém tinha interesse nisso. Tinha informado a polícia, mas ninguém deu muita
importância ao acontecimento. ‘Aconteceu, simplesmente’, disseram-lhe.
Semanas passaram e ela ‘distraía-se’ com os casos no
tribunal. O seu caso não avançava, e cada vez tinha menos importância. Estava
viva, o que era bom. As dividas iam sendo pagas com o seu dinheiro, mas pela
mão dos pais. As amigas até lhe tinham apoiado, quando ela se sentia mais só.
Mas cansadas das choradeiras de Lena por não ter dinheiro para roupa nova,
largaram-na também.
Lena estava só, mesmo acompanhada. Ia demorar décadas a
pagar os créditos, ia demorar anos até os pais terem confiança nela o
suficiente para a deixarem viver sozinha de novo. Os homens do escritório,
sabendo da história dela, nem lhe davam confiança. Apesar de ser das mais
lindas mulheres que tinham visto. Ninguém confiava nela, tão simples como isso.
E sem conhecer mais ninguém, além dos clientes, com quem nunca se iria
envolver, sentia-se triste. Assumia a sua culpa. Mas também atacava a família
por não a deixar viver a vida como gostava.
Até que, um dia, chegou um cliente novo. Queria se
divorciar. Lena, comovida com a história dele, deixou-se envolver demais.
Quando deu por si, passado umas semanas, apenas, já estava envolvida com ele.
Para não desconfiarem do relacionamento, pedia para sair mais cedo e chegava a
horas casa, depois de ter estado com ele. Até que, um dia, o pai ligou para
saber dela. Ao ser confrontado com horário ‘novo’ de Lena, irritou-se tanto que
esteve para destruir o telemóvel. Mas, graças à paciência da mãe de Lena,
controlou-se. Esperaram juntos pela chegada de Lena. Quando ela chegou,
confrontaram-na.
- Boa tarde, Lena. Isso é que são horas de chegar? – Disse
o pai.
- Como assim? Vim à hora que chego sempre, não me deixam
sair mais cedo… - Disse Lena, desconfiada.
- Lena, minha filha, não mintas! Não tenhas o descaramento
de fazer isso. Nós já sabemos que costumas sair mais cedo, com a justificação
que vens nos ajudar. Mentirosa, és uma vadia. – E deu-lhe uma chapada.
Aí, Lena descontrolou-se.
- Não, chega. Chega disto. Vocês não podem fazer-me isto.
Estou farta. Podem me ajudar a controlar as minhas contas, mas controlar a
minha vida como se ainda fosse uma criança, não. Admito, a culpa foi minha de
ter sido assaltada, devia ter seguido a minha intuição e evitado aquele
multibanco. Mas não tenho culpa de querer ter uma vida além de vocês. Ou vocês
me ouvem ou vou-me embora.
- E vais para aonde? Faz o que te mandamos e cala-te.
- Não me calo, chega. – E bateu com a porta da rua.
Liberdade. Correu dali o mais depressa que pode, evitando
um confronto maior com a família. Ia ter com o seu amado, segura que ele estava
livre. Mas, quando chegou ao seu local de trabalho, deu-se conta que ele não
vinha sozinho. Vinha acompanhado por uma bela mulher, ignorando-a. Lena sentiu
que o seu mundo desabava. Era certo que a sua relação era proibida,
extremamente física. Mas ela estava mesmo apaixonada por ele. Aparentemente,
ele não.
Lena foi a um café, sozinha. O que faria agora, sem
família, sem amor, sem dinheiro?...
Passou uma noite, passou duas… Dormir ao relento não era
tão difícil assim, pensou Lena. Estava numa rua mais recolhida, onde quase
ninguém a reconhecia. Não tinha para o trabalho nesses dois dias, como se ainda
o tivesse. Decerto já tinham sabido do caso com o cliente e tratado de pôr os
papeis para ela ir para a rua. Ninguém procurava por ela, também o sabia.
Porque o haviam de o fazer? Afinal, ela tinha saído de livre vontade de casa.
Mal sabia ela… Lena era alvo de uma busca pela cidade incessante pela parte dos
pais dela. No entanto, Lena havia se escondido tão bem, que não sabiam onde a
procurar. Ela vivia das esmolas, e do pouco comer que pessoas estranhas
bem-intencionadas lhe deixavam. Ao terceiro dia pareceu-lhe reconhecer uma
figura feminina que passada. Envergonhada, Lena escondeu-se. Mas não foi o
suficiente. Era Amélia.
- Lena? Lena, és tu? És tu, reconheço as tuas roupas. –
Disse Amélia, aproximando-se.
- Não te aproximes, estou suja.
- Estás assim porque queres. – Disse Amélia, continuando. –
Os teus pais procuram-te.
- E que querem eles? Uma boneca sem vida própria? É isso o
que me fazem sentir…
- Vá, não sejas assim. Anda para minha casa, arranjar-te e
comer algo. Eu empresto-te roupa minha. Mas, com a condição que irás falar com
os teus pais de seguida.
Lena pensou um pouco.
- Está bem… - Acabou por responder.
E Lena foi com Amélia. Chegadas ao apartamento de Amélia,
Lena pediu para tomar um banho. Não se sentia bem num lugar tão limpo. Amélia
assentiu e foi buscar uma roupa para Lena se mudar.
- Tudo certo, depois ligamos para o teu pai. Por enquanto,
vai te arranjar, enquanto preparo algo para comeres.
Depois disso tudo, Lena ligou aos pais dela, do telemóvel
de Amélia.
- Estou? – Respondeu o pai.
- Sim, pai? – Disse Lena. – Era só para te dizer que estou
bem, estou na casa de Amélia…
- Filha! Estávamos tão preocupados contigo… Quando nos
podemos ver? Desculpa pelas discussões, prometemos ajudar-te sem mais
problemas…
- Obrigada, pai. É mesmo do que eu preciso. – Disse Lena,
mais calma.
E deu-lhe a morada da casa de Amélia.
Passado meia hora, já lá estavam. Muito mais calmos,
pediram perdão pelas exigências que tinham feito da vida de Lena. Afinal, ela
já não era uma criança para a controlarem desse jeito. Lena perdoou-os. Foram
para casa, felizes. Lena telefonou para o trabalho. Aceitaram-na de volta,
desde que se emendasse. Lena aceitou as condições.
E tudo vai bem na vida, quando acaba bem…
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