sexta-feira, novembro 17, 2017

Ntinhina






Ntinhina era uma menina crioula de Guiné-Bissau. A sua mãe trabalhava no campo e a vender o fruto da sua horta durante horas. Mesmo assim não tinha o suficiente para ela e para os irmãos, tendo que mendigar. Ntinhina sabia da lei nova de prender os meninos que fossem apanhados a mendigar. Mas Ntinhina não tinha hipótese; era a sobrevivência dos seus irmãos que estava em causa. O seu pai havia partido para Portugal em busca de vida melhor para todos. Mas nunca mais tinha voltado ou mandado algo. A mãe tinha esperança que ele apenas se estivesse a estabilizar, mas Ntinhina sabia que ele os tinha abandonado. Não o queria dizer à mãe, simplesmente sabia-o.

 Sentou-se na beira de uma esquina e começou a pedir. Naquela rua movimentada só poucos davam esmola. A maior parte eram pobres, como ela. E os poucos ricos que passavam, ou assim pareciam, nada lhe davam. Pelo contrário, fingiam que não a viam. Alguns dos mais humildes davam-lhe uns trocos. Era pouco, mas ajudava. Ntinhina agradecia sempre. 'Deve-se agradecer a generosidade, sempre.', dizia a mãe. Ntinhina obedecia.

 Ntinhina estava distraída, nem deu por eles chegarem. Estavam dois polícias a aproximar-se dela. Quando se apercebeu, pegou nos trocos e levantou-se. Mas já era tarde. Eles já estavam ao pé dela.

- Que estás a fazer, rapariga? Que fazes?

- Sim, que fazes? A pedir esmola? - Disse o outro polícia.

 Ntinhina estava com medo. Os polícias levaram-na para uma carrinha onde estavam mais crianças.

 - Ntinhina, que fazes aqui? - Perguntou Busnassum, um amigo.

 - Fui apanhada... - respondeu Ntinhina.

- Também eu...

 Ntinhina e Busnassum tremiam de medo. Não sabiam para onde iam. Só queriam voltar para as suas mães.

- Todos prontos. - Disse o polícia que tinha apanhado Ntinhina. - Podem ir.

 'Ir!? Ir para onde?', pensou Ntinhina. Ela não queria ir para as ilhas. Como poderia escapar?

 Quando deu por si, estava a chegar ao porto. Estavam balsas à espera no porto. Ou assim pareciam. Saíram da carrinha, à ordem do polícia, e entraram dentro das diferentes balsas. Foi assim que Ntinhina e Busnassum se viram pela última vez. Ntinhina foi para a ilha de Bolama. Chegou lá, abandonaram-na de imediato, a ela e a mais duas crianças. Ela era a mais velha. Sozinhos, num sítio desconhecido. Ninguém se aproximou deles. Ninguém perguntou nada. Ntinhina ordenou aos dois rapazes que a seguissem, enquanto se orientava. Tinham fome e nada para comer. Nem lhe tinham deixado os trocos. Tinham-nos roubado. Ntinhina não entendia a língua que falavam. Não entendia nada. Mal sabia o que aconteceria. Abandonados, já estava a ficar tarde. Ntinhina tentava encontrar um sítio para dormirem, já que ninguém se parecia importar com eles. Encontrou um sítio perto da floresta. Deitaram e adormeceram de imediato, de tão cansados que estavam. Ntinhina apanhou algumas folhas de palma do chão e organizou-as, para fazer de cama. Acordou os meninos e deitou-os sobre as folhas, tal como fazia com seus irmãos. Eles eram a sua família, agora.



O dia veio e a fome e sede com ele. Os habitantes pareciam não ligar, mas uma mulher, com pena deles, chamou-os com gestos. Eles correram até ela.

- Água, água! - Pediram eles.

 A mulher pareceu entender eles e deu-lhes água. Pareciam que nunca tinham bebido nada melhor. Depois, deu-lhes alguns bivalves e cabeças de peixes. Ntinhina e os dois rapazes comeram tudo, derivado da fome que sentiam.

 Dias passaram, semanas até. Nada mudou naquela forma de viver. Cada vez apareciam mais crianças, a ilha parecia demasiado pequena para eles. Deixou de haver generosidade. Todos tinham de trabalhar por um pedaço de peixe em todo o dia. As brigas eram frequentes. Os roubos, o pão de cada dia.

 Até que um dia não trouxeram mais ninguém. E no outro. E outro dia igual. Ntinhina perguntou a uma pessoa da ilha que se passava.

 O governo caiu. Vão vos levar para vossa terra.

 Ntinhina agradeceu a informação. Mais que agradecida, estava extasiada. Finalmente ia voltar para Bissau. Ia ver seus irmãos, sua mãe. Tudo tinha um fim. Aquele era o seu…

quarta-feira, junho 21, 2017

A despedida


Luísa chegou a casa. Estava desvastada. Tudo o que queria era fugir. Mais uma vez o namorado tinha feito um cena de ciúmes no meio da rua, obrigando-a a regressar a casa. Dirigiu-se à janela para respirar... Reparou no marco do outro lado da rua... E porque não partir mesmo?

 Quando reparou, o namorado já tinha saído para ir ao café. Era a sua oportunidade. Decidiu fazer as malas e escrever uma carta. Ele ainda demorava, Luísa sabia-o. Este era o conteúdo da carta...:

  Enquanto te temia tudo corria bem. Pelo menos para ti. Mas agora tudo acabou. Por este meio digo-te-o. As palavras que me dirigiste... Hei de me lembrar delas toda a minha vida. Ou, pelo menos, até ser feliz. Pois acredito que a felicidade regressará, seu reles cobarde. E ninguém me baterá mais. Agora que parto deixo-te estas palavras para que possas reconhecer os teus erros. Ela chegar-te-á muito depois de ter partido. Não me procures, pois não saberias onde me encontrar. Tudo o que quero é esquecer-te. Esquece-me também, se o puderes. Com todo o amor me despeço. 


 Luísa.


Terminada a carta, pegou nela, nas malas e dirigiu- ao marco do correio. Deixou lá a carta e chamou um taxi pelo telemóvel. Onde ia? Até um lugar longe daí. Devido ir até aos comboios, ir embora, simplesmente.


Ana Sophya Linares

Corpo esquecido


Tudo o que queria era voltar atrás. Esquecer tudo. Mas, naquele turbilhão de sentimentos, não o conseguia fazer. Ele tinha feito mal a Mariana. Ela não o podia esquecer. E como o fazer? Estava cheia de nodoas negras. Mas por fim tinha-o confrontado. Podia lhe ter valido uma tareia, mas conseguiu-o.

Estava farta dele. Ele tinha traído Mariana vezes demais. E ainda chegava com aquele ar de machão, dizendo que a culpa era só dela, por não lhe dar o que queria e quando o queria. Mas, depois, mostrava-se arrependido das suas palavras e acabavam a fazer amor como nunca antes. Como ela se arrependia desses momentos de fraqueza. Como havia sido burra. Mas agora era o fim, tinha se livrado dele. Agarrara numa faca e atingira-o no pescoço, impossibilitando-o de falar. José tentara respirar, mas só saía sangue. E, por fim, caíra, morto. Mariana não podia estar mais feliz.

Ela não tinha muita força, mas iria dar tudo por tudo para cortar José por partes. Queria se desfazer dele e essa era a forma mais fácil que encontrara de o fazer. Os seus pais não podiam desconfiar nada. Apesar do filho ser um traste, defendiam-no sempre, dizendo que Mariana é que estava errada, que ela merecia as sovas. Achou, na sua mente, divertido. Agora que ele estava morto, podia brincar com eles. E que tal enviar uma orelha com o pírcingue dele, sangrenta? Mal podia esperar para ver a cara deles. Mas, por outro lado, era errado. As pistas podiam conduzir até si. Não, não faria isso. Apenas desmembrá-lo-ia e livrar-se-ia dele, em pedaços.

A noite já ia longa… tinha de o fazer rápido. Por sorte viviam numa casa terra, sem vizinhos. Nem queria imaginar como seria fazer aquele serviço sem essa particularidade. Teria de esperar pelo amanhecer, para se encontrar sozinha. Para aumentar a sua sorte, havia uma motosserra na garagem. Foi ver dela e começou a despedaçar o corpo, que, entretanto, tinha arrastado para a banheira. Não era nada de novo livrar-se de um corpo assim, mas era a primeira vez que o fazia.

Quando acabou, estava coberta de sangue. Apetecia-lhe tomar um banho, mas primeiro tinha de tirar de lá os pedaços de José. Foi buscar uns sacos pretos e foi aí que se apercebeu que começava a amanhecer. E o que faria agora, como levaria os restos de José até onde quer que fosse? Tinha de esperar pelo dia seguinte.

Nesse dia não iria trabalhar. E ligou também para a empresa de José, dizendo que ele estava constipado, não podendo ir trabalhar. Depois, descansou.

Acordou, já eram cinco da tarde. Ainda faltavam duas horas para anoitecer. Foi tomar um banho para limpar todo o sangue de cima de si. Tinha sangue em todo o lado: cabelo, corpo…

Por prevenção, deitara-se no sofá a dormir, com um saco de plástico rasgado que cobria todo o sofá, para não o sujar.

 Depois do banho, foi fazer algo para comer. Tinha pouca carne em casa… Olhou para os sacos com os resto de José. E porque não… Tirou um pedaço do peito de José e pô-lo a fritar. Hum, nunca nada lhe tinha sabido tão bem. E que tal ficar com ele em casa, cozinhá-lo? Parecia-lhe uma boa ideia. Nem ela sabia o que a aguardava…

Ao fim de uns dias, ligaram-lhe. Ninguém sabia de José. Procuraram por ele nos bares habituais, mas não o encontraram. Se Mariana sabia dele. Ela respondera que não, desde aquele dia que não sabia nada dele. Mas o carro ainda se encontrava a porta dela, e foi isso que a tramou. A polícia, alarmada pelos pais de José, bateram-lhe a porta. E foi aí que viram o estado da casa e que viram os sacos pretos. Sem arca e um frigorifico pequeno, não dava para guardar tudo. E o sangue demorava a sair. Por isso a casa ainda se encontrava desorganizada.

Prenderam Mariana pelo crime atroz. Disseram que nunca tinham visto nada assim.
Foi julgada a porta fechada, pela atrocidade do crime. Apenas assistiram os pais de José. Até os seus pais haviam abandonado Mariana. Ninguém jamais a achou inocente, que apenas se havia defendido. Foi condenada a 25 anos numa instituição mental, pois, segundo as palavras do juiz: ‘Quem faz um crime destes, não bate bem da tola’.


Ana Sophya Linares

quinta-feira, junho 01, 2017

A minha página

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A batalha

Nesse dia Moreira se levantou, apressado. Tinha conhecido uma garota com quem havia dormido. Por sorte, a sua noiva não se encontrava na cidade e sim no interior, onde permanecia escondida das manifestações que assolavam a cidade. Moreira, como policial, tinha pouco tempo para se arranjar. Às sete ia substituir os colegas que, cansados, haviam tentado conter as manifestações durante a noite. A moça começou a despertar.
- E aí, amor, já vai indo?
- Vou, e você também. A noite foi boa, mas está na hora de se ir. E não me chame de amor; foi só uma noite.
- Cara, que violência. Gato, você não quer repetir?
- Não, não quero. Tenho noiva, sabe. E vou repetir: foi só uma noite.
Então ela se levantou, danada, se vestiu e foi-se embora. Moreira ficou só, pensando na burrada que havia feito. Nunca mais iria se deitar com uma manifestante. Só causavam problemas. Quando olhou para a hora, tomou um duche rápido, se vestiu e tomou um café. De seguida, saiu. ‘De volta à batalha.’, pensou. Caraca, como estavam as ruas. Nem parecia um bairro comercial.
- Ai, mano, ‘tá de volta? – Perguntou Pires, um colega.
- É isso, cara. Vou render você. Pode ir.
- Grato, colega. A noite foi difícil, agora é sua vez. Vai fazer até quanto?
- Pelo menos umas 12 horas, não sei. O que durar.
- Muito bem. Vou deixar você, então. Arrasa, bro.
E aí Pires deixou a frente armada e se foi. Moreira ficou com os outros colegas, tentando defender a barricada. O dia já ia longo quando a manifestação pareceu se tornar pior. Portanto, tiveram que usar gás lacrimogénio para debandar com os ativistas. Mas isso só fez piorar a barricada, que agora era atingida por pedras. Sem pensar duas vezes, Moreira atirou com a arma de fogo. Nem viu se atingiu alguém; não era esse o seu propósito. Continuou batalhando até ficar sem bala. A plebe pareceu se afastar, deixando a barricada da Polícia Federal. Era noite quando foi dispensado. Podia ir para casa, já tinha feito muito. Tinha fome, mas nada estava aberto. Tinha pouca comida em casa, pelo que pensou em se aventurar pela outra ponta da cidade. Estava indo lá quando decidiu telefonar a sua noiva. Chamou, chamou… E nada. Não atendia. Preocupado, Moreira encostou o carro na via e telefonou para sua família.
- Alô, é você, Pedro?
- Sou eu, sim, mamãe. Sabe da Gabi? Estou tentado lhe ligar, mas ela não atende…
- Você não soube? Houve um colega seu, um policial, que andou disparou a arma de fogo contra os manifestantes. Aí, sua noiva estava lá.
- Mas estava lá, como? Eu disse para ela não ir. Que era perigoso, que ela não se devia manifestar. Olha a vergonha que vou passar com os meus colegas.
- A vergonha? Vergonha é policial armado disparando sobre uma manifestação indefesa.
- Indefesa não. Eles mandam pedras contra nós. Nos temos de nos defender.
- Não quero falar mais. Que vergonha. Vá ver da sua namorada.
E desligou. Moreira não quis admitir, mas a culpa havia sido sua. Ele é que tinha disparado contra a manifestação. Nesse momento ela podia estar morta! Ele foi rápido ao hospital mais perto da sua zona de atuação. Chegado lá, chamou pela enfermeira de serviço e perguntou pela Gabi Andrella. O informaram que ela estava sendo operada, que tinha sido atingida por uma bala por um policial armado. Que tinha sido ferida perto do coração, mas, em principio, iria se salvar.
- Graças a Deus. Mas não há nada que possa fazer?
- Pode se sentar e esperar. Mais logo lhe darei noticias.
- Obrigado. Assim farei.
E sentou-se. Com a preocupação tinha esquecido a fome. Nem uma maquina de comida existia naquele piso. Tinha de aguardar… Contatou o seu chefe avisando que não iria trabalhar até sua noiva se recuperar. O seu chefe compreendeu. Como lidar com o arrependimento? Como lidar com o sofrimento? Ele queria dizer que tinha sido ele a disparar, mas não tinha como. E, de certa forma, a culpa era de sua noiva. Ele avisara para ela não fazer nenhuma tolice. Sabia da sua opinião contra o estado. Mas ele avisara-a do perigo das manifestações. Não, a culpa era dela. Ela é que fizera isso a si própria. Ele não dispararia se soubesse que ela estava lá. Mas não, ela tinha de o contrariar. Como era teimosa. Perdido em seus pensamentos, nem deu pela vinda da enfermeira que lhe ia dar notícias sobre Gabi.
- Sr. Moreira? – Disse a enfermeira.
- Sim, sou eu. – Disse ele, levantando-se abruptamente.
- Sr. Moreira, sua noiva já foi operada. Correu tudo bem. Ela agora vai descansar. Seria melhor voltar daqui a umas horas, já é muito tarde. Só amanhã é que ela deve acordar.
- Tudo bem, eu vou. Manhã cedo estarei aqui, para a ver.
- Muito bem, pode ir. – Disse a enfermeira, virando costas.
Moreira se sentia mal. Nunca tinha atingido alguém que amava. Tinha sido um erro. Mas iria lhe contestar a razão. Que a culpa tinha sido dela. Foi no dia seguinte, mas disseram-lhe que estava fraca, que precisava de repousar mais, que não aconselhavam visitas. Moreira, resignado, aceitou e foi-se embora. Iria esperar uns dias. Enquanto isso, o melhor era voltar ao trabalho. Falou com o seu chefe que rapidamente o mandou voltar às ruas. As manifestações estavam maiores que nunca e todo o homem era necessário. Passado três dias, voltou a visitar a noiva. Os pais dela tinham-lhe telefonado do hospital, dizendo que Gabi já estava mais forte, que poderia receber visitas. Moreira saiu rápido do trabalho e foi para o hospital, avisando o chefe da ocorrência, que o liberou. Chegou ao hospital, quase desesperado.
- E aí, moça, pode me dizer se Gabi Andrella pode receber visitas?
- Espere um pouco que vou ver. Qual é seu nome, mesmo?
- Moreira, Pedro Moreira.
- É familiar?
- Não, sou noivo dela.
- Só com autorização da família você pode visitar ela.
- Mas eu tenho, foram eles que me ligaram.
- Então espera aí, que eu vou verificar.
E a enfermeira foi. Enquanto isso, Moreira observou o hospital. Era muito limpo, parecia um palácio. De construção antiga, estava muito bem conservado. Então ela voltou. Confirmou que podia visitar Gabi, mesmo estando fora do horário e não sendo família. Moreira nem quis ouvir mais nada e seguiu direto para o quarto de Gabi. Quando entrou, viu ela deitada na cama, sorrindo. Ele se aproximou.
- Como vai, meu amor? Você me deu um susto, sabia?
- Sério, cara? Meu amor, lhe peço perdão. Mas um cara atirou em mim…
- Eu sei, minha querida. Eu é que lhe peço perdão; nunca devia ter agido assim.
- Como assim? Que é que você quer dizer com isso?
Moreira fixou-a. Não sabia se havia de dizer a verdade ou não. Mas não podia esconder mais isso.
- Amor, peço perdão… Fui eu que atirei em você. ‘Cê não devia ter estado lá, se eu soubesse, nunca tinha atirado. Mas os policiais se viram em dificuldades, não pude virar costas no momento. ‘Cê sabe o que é aquilo.
- Sei, sei sim. É uma selvajaria. Todo mundo comete erro, mas atirar contra uma manifestação? De que é que você se estava defendendo? Dos gritos!?
- Amor, eles atiraram pedra na gente. Tive que defender, porra.
- Sai. Sai daqui. Não te quero ver mais. Sai, cafajeste.
Moreira nem lutou. Viu o desagrado na face de Gabi. Saiu sem pensar mais. Foi de volta para a luta. Seria a sua vida agora. Nada importava mais. Só a batalha, só a solidão…

quinta-feira, maio 18, 2017

O homem que tinha medo de morrer

Era uma vez um pobre rapaz a quem o avô tinha falecido. Tinha sido durante o sono.
- Coitado, podia acontecer a qualquer um. - Disse um vizinho.
Essas palavras impressionaram Ramiro, o neto. 'Qualquer um!?', pensou ele. 'Então eu também posso morrer, assim, a qualquer momento?'. Para tirar duvidas, bastava-lhe falar com os seus pais. Mas Ramiro, demasiado envergonhado para os seus nove anos, foi incapaz de verifica-lo.
Esse foi um dilema que lhe perseguiu até aos 14 anos, altura em que começou a transformar-se num homem. A partir daí acreditou que era incapaz de morrer, como qualquer outro rapaz na sua idade. Começou a perseguir raparigas e a namoriscar com elas, sem pensar no dia de amanhã. Tinha dezasseis anos quando apanhou o primeiro susto com uma rapariga. Por pouco ela estava grávida. Mas tinha sido só um susto, que lhe ensinou que a proteção é importante. Depois disso, foi sempre a seguir.
Interessava-lhe mais os carros que os estudos, pelo que, quando saiu, o pai pô-lo a trabalhar na sua oficina, na aldeia onde eles moravam. Havia pouco movimento, Ramiro sentia falta dos dias de escola.
- Se queres trabalhar, ficas aqui. Se queres festa, então tens de estudar. - Disse-lhe o pai.
Ramiro ficou a pensar na proposta. Para estudar precisava de melhorar as notas. Podia trabalhar de dia e estudar à noite, sem desistir de nada. Depois, na universidade desenrascava-se. E foi assim que, aos dezanove anos, Ramiro voltou à escola. Voltou a ver os amigos de sempre, que tinham chumbado, e que faziam melhorias de nota, tal como ele. Aos vinte e três conseguiu ir para a universidade. A vida corria-lhe bem, apesar das dificuldades. Não passava fome, mas era-lhe difícil sobrar-lhe dinheiro para festas, depois de contas pagas. Os pais não facilitavam. Só lhe davam o estritamente necessário. E o emprego não estava assim tão fácil de arranjar, pois ele tinha pouca experiência, além de ter trabalhado na oficina.
Foi aos trinta que acabou o curso. Com muita dificuldade, conseguiu. Ramiro sentia-se feliz. Já tinha uma linda companheira, planeavam casar daí a alguns anos e constituir família. Foi quando começou. Ramiro tinha dificuldades em dormir, advindo do trabalho imenso que fazia, como professor. Começou com pouco. Mas a sua companheira reparou que a sua falta de sono era fora do normal. Ele chegava a estar acordado até às três da manhã e a acordar às seis, três horas depois, sem qualquer vestígio de sono.
- Amor, isso não é normal. - Disse Telma, preocupada. - Devias consultar um médico.
Ramiro desvalorizou, dizendo que era um hábito que tinha apanhado da universidade, que não era nada com que se devesse preocupar. Mas tanto que a namorada insistiu que foi a um medico. O médico indicou que isso não era normal. Que devia tomar medicação para, pelo menos, dormir 8 horas por noite. Ramiro achou um exagero, mas decidiu aceitar a medicação. Foi o seu maior erro. Foi quando os seus medos de infância voltaram.
Ramiro sonhava muito, quando começou a tomar a medicação. Sonhava que morria durante o sono. Mas, como tomava a medicação, não conseguia acordar. Quando finalmente o fazia, era de manhã. Uma vez sonhou que morria a dormir, tal como o seu avô. Viu o seu funeral, as pessoas chorando por ele. Ramiro não podia fazer nada, apenas observar. Viu como eram atravessados pela dor, para depois esta desaparecer. Como seguiam as suas vidas e como ele ia ficando cada vez mais só, na sua cova. Ninguém o visitava mais. Nem seus pais nem sua namorada. Estava só. E, então, acordava. Estava suado. Teve esse sonho noites seguidas, fazendo-o ter medo de voltar a adormecer.
Deixou de tomar a medicação. Voltou a dormir apenas três horas por noite e acordava sempre sobressaltado, com a sensação que estava para morrer. A principio a namorada aceitou. Mas Ramiro foi ficando cada vez mais estranho. Não dizia coisa com coisa, dizia que via coisas onde elas não estavam, irritava-se com qualquer coisas, ficou mais carente, com medo de perder todos. A namorada deixou-o. Os amigos foram abandonando-o. A família foi lhe deixando de falar. Ficou cada vez mais só, até apenas ter o trabalho. E até daí foi despedido, pois começou a ensinar aos seus alunos matéria não escolar.
Fez estudos sobre a possibilidade de vida além da morte e falava disso nas classes. Os alunos, assustados, contaram à diretora de turma, que fez queixa contra Ramiro. Não tinha mais vida. Impedido de lecionar, pouco lhe restava a fazer naquela cidade. Mas não podia voltar para a terra dos pais, aí não tinha nada à sua espera.
Começou a ter medo de dormir. Tinha a sensação que ia morrer. Recusa-se a dormir, comia pouco. Andava de um lado para o outro no apartamento, falando consigo mesmo. Ramiro começou a enlouquecer, pouco cuidava de si, higienicamente. Até que ela veio. Sentiu que ela vinha, tinha a certeza. A sua ex-namorada, Telma. Vinha para buscar umas coisas que se tinha esquecido. Assustou-se com o estado de Ramiro e da sua casa.
- Fizeste bem em ter vindo. - Disse Ramiro. - Estou prestes a perder a casa.
- Mas... Que se passou contigo? Porque está isto assim?
- Fui despedido. Ainda não saí de casa para tratar do desemprego, à duas semanas. Não consigo sair. Amo-te, fica comigo.
- Desculpa, mas não, tens de me deixar ir. Adeus.
E bateu com a porta, sem levar nada seu. Ramiro sentiu-se desolado. Já não sabia o que fazer. Até que viu uma sombra na parede que lhe entregava uma faca. Ele pegou na faca que estava na mesa da cozinha, à sua frente, e fez o gesto da sombra. Ele matou-se, cortando a garganta. Agora, como espírito, nunca foi mais só...

As luzes

Havia luz no céu. Milhares de luzes, não só provocadas pelas estrelas. As pessoas lançavam fogo-de artifício pelo céu. Camila observava-os, com bastante atenção.
- Que lindo, não é, amor? - Perguntou Camila para Bela.
- Sim, querida, é lindo.
Abraçaram-se. Naquela noite, nada ia ser escuro. Iriam passa-la a ver as luzes. Era tudo tão estranho desde que Camila e Bela tinham sido expulsas de casa. E tudo por um amor diferente. Eram amigas de infância, conheciam-se bem. Nada tinha sido por acaso. Desde novas sabiam que eram diferentes, contavam tudo uma à outra. Mas foi um escândalo quando contaram a família, pior quando souberam que eram as duas amigas e namoradas. Os seus pais não tiveram duvidas quanto a expulsá-las de casa. De repente, viram-se na rua, sem ninguém para as ajudar para sair dessa realidade. Os primeiros tempos custaram, mas, a pouco e pouco, habituaram-se. Não tinham escolha. O que vale é que ainda era verão. Depois, no inverno, logo se veria...
Levantaram-se e foram andar, sem saber onde iam dormir nessa noite. A noite estava fresca, o tempo começava a mudar. Mas tinham de aguentar, não tinham saída. A principio, parecia-lhes estranho ter de pedir esmola. Mas, depois, tiveram que se habituar. Roubar é que não, isso nunca. Podiam ser sem-abrigo, mas tinham a sua dignidade. Outros já lhe tinham dito para ir aos escritórios da revista Cais, mas elas tinham muita vergonha, diziam que não se encontravam em condições. Tinham vergonha, simplesmente. Vergonha do que eram. Todos os amigos as tinham abandonado. Ainda só tinham 16 anos, pelo que não podiam encontrar trabalho. E, possivelmente, também a Cais não as ajudaria.
Ninguém perguntara por elas, elas sabiam. Se o fizessem, já tinham sido encontradas. Mas não, ninguém queria saber delas. Tinham ido para Lisboa para se afastarem de tudo e de todos. Ninguém ligava, mesmo. Com dezasseis anos acredita-se que tudo é possível. E, para elas, era possível viver o seu amor. Mesmo com dificuldades. Voltar a casa não era opção; sabiam bem o que lhes esperava. Só lhes restava andar... E guardar esperança.
Uma noite, enquanto caminhavam de mãos dadas por uma rua escura, apaixonadas e sem senso comum, foram atacadas. Fizeram-lhes de tudo... Enquanto sangravam naquele chão duro, olhavam-se e perguntavam-se se alguém sentiria falta delas... Aparentemente, alguém tinha dado por falta delas. Depois de terem sido atacadas, tiveram de dar entrada no hospital, onde verificaram que as duas estavam dadas como desaparecidas. Quando os seus familiares se viram a sós com elas, no hospital, não pareciam tão animados quanto isso.
- Isso de tu desapareceres para Lisboa. - Disse o pai de Camila para ela, observando se alguém ouvia. - Foi a melhor coisa que fizeste. Mas tinha que dar merda, tu tinhas de te magoar. Agora não há volta a dar. Vais voltar para casa. E nada de conversas de namoros. Ali a Bela também vai para casa. Para casa dos avós, longe da nossa terra. E a conversa acabou aqui.
- Mas... - Tentou dizer Camila.
- Mas nada. Acabou.
Camila sentiu-se desesperar. Como estaria Bela? Estava num quarto diferente do seu. Mas não as deixavam levantar-se, para se verem uma à outra. Ainda tinham as feridas recentes do ataque às duas. Como aquilo se tinha passado? Mais tarde, haviam os pais por confessar, tinham dado conta do seu desaparecimento pressionados pelos outros habitantes da terra deles. Fartos da 'perseguição', acabaram por ir a GNR.
- E tudo por tua culpa e daquela desvairada da Bela. Falta de atenção, é o que vocês têm. - Disse-lhe o pai.
Camila só chorava, depois das visitas dos pais. Mas sempre às escondidas. Nunca as enfermeiras se deram conta. No dia da saída do hospital, Camila e Bela viram-se à distância. Mal conseguiram dizer adeus, já os pais delas as enfiavam nos carros. E como seguiria a história a seguir daqui? Camila e Bela sentiam-se mais sem rumo do que antes, quando estavam juntas na rua. Terminaria o amor aqui?

Tragédia no Verão

Quando me levantei, estava tudo acabado. Bastou um gesto meu para ele o perceber. Sim, é verdade. Tinha-o torturado com mensagens atrás de mensagens. Tinha quase a certeza que ele me traía. E agora, a confirmação. Nem foi preciso dizer mais nada, levantei-me e saí. Era o fim. Diogo bem podia gritar que estava arrependido, que me queria de volta. No entanto, isso não aconteceria. Continuei a andar, como se nada fosse. Já era de noite quando chegara a casa. Nem me lembrava por onde tinha ido, para demorar tanto. No entanto, ele seguira-me sempre, não o conseguira cansar ou, sequer, despistar. Estava rouco, de tanto gritar. E o telemóvel não parara de tocar. Devia ser ela. Ele tinha me confessado que lhe tinha contado que ia me dizer a verdade sobre eles. Só eu não o sabia, aparentemente. Todos os amigos o sabiam e se riam nas minhas costas. Cobardes, é o que eles eram. Cansada de Diogo, parei para falar com ele. - Olha, eu não quero falar contigo. Acabou, entendes? - Desculpa... Mas eu amo-te, não quero que vás. - Essa decisão tomaste-a tu quando me decidiste trair. E vê se ligas a tua amiga, ela deve estar farta de ligar. - Como sabes que é ela? - Desconfiei. Para te ligar tanto. Tu não és de confiança nem nunca serás. Temos de ter sempre um olho em ti para ver se não nos trais. Com certeza prometeste-lhe namoro, senão não ligava tanto. - Como sabes tanto? Com quem andaste a falar? - Simplesmente contigo. E basta-me. Adeus, Diogo. Acabou tudo. Não restou nem uma amizade. Vai e aproveita a vida. - Não podes ir assim... - Mas vou. Mas vou! Porque aqui não há mais nada. - Disse, pondo a mão no coração. - Aqui acabou tudo. - Desculpa-me. Perdoa-me... - Não, Diogo, isso não o farei. Desculpa, mas tenho de ir. Deixei-o só, chorando. A mim também me apetecia chorar, mas não o fiz. Com as forças que me restaram, fiz-me forte e entrei em casa. Fechei a porta na cara dele. Assim que o fiz, caí prostrada no chão, encostada à porta. Senti que ele fez o mesmo. Não, não ia espreitar pela janela para ter a certeza. Levantei-me e fui pôr um pouco de música, para me distrair. Cantarolando, fui à cozinha e lavei as mãos. Era hora de fazer o jantar. Nem sabia o que fazer. Não tinha fome alguma. No entanto, não me deixei levar pela tristeza. Ia cozinhar, sim. Nem que fosse uns ovos mexidos. Perfeito, era isso mesmo. Fui buscar uns dois ovos e pus mãos ao trabalho. Após o jantar, levantei-me e fui espreitar pela janela. Menos mal, ele já não estava lá. Parecia-me ter ouvido ele a falar ao telemóvel, próximo da porta. E, depois, nada. Tinha partido. Finalmente, já não aturava mais Diogo. Parecia que todas as minhas inseguranças tinham partido. Estava livre, enfim. Livre de medos e pesadelos. Não me apetecia fazer mais nada, por isso fui dormir. Lavei os dentes, mudei para pijama e deitei-me, depois de passar um creme pela cara. Tentei conciliar o sono com musica, mas não estava a dar resultado. Por isso, retirei os auscultadores e desliguei a musica. Tentei não pensar nele e simplesmente dormir. Não conseguia. Parecia que todas as minhas inseguranças me atacavam agora. Onde estaria ele? Estaria rindo da minha cara? Teria aquele 'espetáculo' sido só um teatro da parte dele? Não, não podia continuar assim. Liguei novamente a musica e pus os fones nos ouvidos, para me distrair. Acordei na manhã seguida com uma horrível dor de cabeça. Aparentemente a musica resultara, com efeitos nefastos. Eram nove da manhã. Ainda bem que era sábado, senão estaria atrasada para o trabalho. Levantei-me, como todas as manhãs, com a diferença de sentir um vazio no meu coração. Fui tomar banho e arranjar-me, para, de seguida, tomar o pequeno-almoço. Depois de o ter feito, tomei dois comprimidos de benuron de 500ml com um copo de água. A dor de cabeça estava a matar-me, parecia que tinha bebido vodka até cair. Mas não, tinha sido apenas a musica. Apenas a musica a dar-me cabo da cabeça. Hoje não me apetecia sair. No entanto, iria fazê-lo. Não me iria prender à casa, chorando por um vazio que nunca devia ter sido preenchido. Chorando por quem não merecia... Com a dor de cabeça mal conseguia levantar a cabeça e olhar ao sol. Por isso não vi quando o carro apareceu. Quando ele chegou. Apenas pude sentir a dor. A dor de alguém me atropelando, propositadamente. Ninguém na rua fez nada, enquanto ele me levantava e me levava para o carro. Ouvi ele gritar que ia me levar a um hospital, tinha me atropelado sem querer. Eu tentei falar, sem sucesso. Mal me conseguia mover. E tinha tantas dores. Via sangue a escorrer pelas minhas pernas abaixo. Pouco conseguia ver, pois só me apetecia adormecer. - Não durmas! - Disse Diogo. - Tenho planos para ti... - Leva-me ao hospital... - Disse eu, com voz fraca. - Hã, o que é que disseste? Não interessa. O que importa é que te tenho aqui comigo. E nunca serás de mais ninguém. Nesse momento senti medo. O que é que ele queria dizer com isso? O que é que ele me iria fazer? Mas não conseguia fazer nada. Ouvi alguém bater no carro com força, tentando me ajudar. Mas eu não conseguia mover as pernas, estavam partidas. - Abre esta porta! - Disse alguém. - Abre ou chamo a polícia! Alguém me tentava ajudar. Diogo, sentindo-se encurralado pelas pessoas que se começavam a amontoar, parou o carro e abriu as portas. De imediato me tiraram de lá e puxaram Diogo para fora do carro pelo colarinho. - Como está? Consegue falar? Já chamei a ambulância, ela vem a caminho. - Ouvi uma senhora a dizer. Do outro lado, não muito longe, ouvi um homem jovem a gritar com Diogo. - ... Tu vais pagá-las, seu filho da mãe. Atropelas uma pessoa e ainda a tentas raptar!? Mas qual hospital qual quê! Tu vinhas é fazer-lhe mal... Não consegui ouvir mais, pois penso que desmaiei. Acordei estava no hospital. Vi um medico a observar-me atentamente, até que falou comigo. - Bom dia, Caetana. Eu sou o Dr. Magno. Está no hospital de St. Maria. Sente-se bem? - Sim... que dia é hoje? - Perguntei, suspeitando que tinha passado mais tempo a dormir que o normal. - Hoje é dia vinte e três de junho. Passou três dias em coma. Estou a verificar se está tudo bem consigo. Não se tente levantar. Uma das suas pernas está engessada. Partiu um osso, mas estamos a recuperá-lo. Não pode fazer esforço algum. - Obrigada, Dr. Magno. Acho que quero descansar... - Muito bem, vou deixa-la só. Daqui a uma hora uma enfermeira voltará para ver se está acordada e dar-lhe o pequeno-almoço. A nível facial nada se passou. Foi só mesmo as pernas; e teve muita sorte. - Obrigada... - Disse, adormecendo. Desse dia lembro pouco, tal como nos dias seguintes. Sei que me estavam a seguir atentamente. Mas, a maior parte do tempo, dormia. Meses se passaram, sem grandes mudanças. A única diferença foi a polícia vir visitar-me quando me conseguia manter mais tempo acordada, para tirarem o meu depoimento em relação ao que se passara no dia do acidente. Contei tudo, desde a descoberta da traição, passando pelo relacionamento meio obsessivo da minha parte, até ao acidente. As palavras que ele me disse... Ainda estavam gravadas na minha mente. Tirando isso, não tinha grandes vistas. Acho que ninguém avisou a minha família. Eu também não conseguia lembrar-me do numero deles, nem tinha o telemóvel comigo. Tinha ficado destruído no acidente. Paciência, também não me procuravam, se não já me tinham encontrado. Um processo decorria em tribunal, por causa do acidente, e precisavam do meu testemunho, para acabar com a defesa de Diogo de vez, segundo me diziam. No entanto, não podia sair do hospital, ainda. Tinham de gravar o meu testemunho para memoria futura. E assim o fizeram. Fui quase massacrada pela advogada de defesa, que dizia que tudo era culpa da minha obsessão por Diogo, enquanto namorávamos. Ele não conseguiu aguentar o meu silêncio e tentou me raptar. Porque o objetivo não era matar-me. Nunca o fora, dissera ela. Ele só me queria pregar um susto, para voltar para ele. Parabéns, disse eu. Conseguiu assustar uma rua inteira. Nesse ponto, a advogada calou-se e não me disse mais nada. Terminaram o interrogatório e deixaram-me descansar. Já não suportava mais aquele processo. Porque é que ele não se matava, se sentia assim tanto a minha falta a ponto de me magoar? Nem sabia eu, mas isso estava prestes a acontecer. No dia em que leram a sentença, ele enforcou-se numa cela. Dizia, numa carta, que não conseguia aguentar a minha falta, ainda para mais numa sociedade que discriminava tanto os criminosos. A mim restou-me saber da sua carta. Não podia fazer nada por ele, nunca pudera. Apenas podia fazer por mim, recuperando-me. E aqui continuo no hospital...

E foste-te

Foste-te embora, deixando-me aqui, desamparada. Deixaste-me só, no meu silêncio. Uma casa vazia, foi o que me restou. Silêncios redobrados pela falta de companhia. Fazes-me falta nesta vida, incessantemente. O que procuravas, afinal, em mim? Eu não sou perfeita, nunca o pretendi ser, sequer. Mas daí a insultares-me vai uma grande distancia. É contigo que estou a falar. Sim, contigo. Sabes quem és. Recuso a dar nome às minhas lamurias. Resta-me saber que a pessoa ...certa sabe quem é. Não, não é nenhum ex deste ou daquela. É apenas um desatino que tive. Breve como um momento. É pena partilhar algo de mim com alguém tão desmerecedor. Temo que, neste mundo, não haja almas boas. Apenas fingimentos desnecessários. O que aprendi foi uma lição, mais uma. Não vou chorar de arrependimento, isso nunca o faria. Mas minha alma está mais triste, isso sem dúvida nenhuma.

A Carta

Despertaste o que havia de mais negro em mim. Trouxeste-me em revolução até aqui. De ti não consegui fugir, por mais que eu quisesse. Fazes-me poesia com as tuas mãos. Eu sorrio e tu continuas. São versos as linhas que me desenhas. Sinto-me sufocar de tão breve respirar. Suficiente leve, acalmas. Por fim paraste de me bater. Eu sangro e tu ris-te. Não te hei de dar o gosto de me ver chorar. Rio-me continuadamente, contigo. Sentes raiva e dás-me mais uma chapada. Não ...suportas a minha felicidade. Temes que consiga ser feliz, sem ti. Ou, talvez, contigo. Não suportas isso. Temes que me vá. Mas como o conseguiria sem ti? Porque te amo. Amo quando vens, depois, mais calmo. Quando me pedes desculpa. Quando me enches de beijos. Amo até quando me bates... Pois sei que voltarás arrependido. Amo-te e não sei como te corresponder. Porque cada traço meu de felicidade tu atacas. Dizes que cozinho mal, que não sou como a tua mãe. Pois claro que não sou. Com ela tu não casarias. Com ela tu não serias feliz, como tantas vezes afirmaste. No entanto, comparas-me a ela, uma mulher que se deixa bater, que perdoa o marido, que desculpa o filho justificando que a mulher merecia. Talvez não sejamos assim tão diferentes, afinal. Mas uma coisa te juro: no dia em que decidires matar-me, perder-me-ás. Pois não voltarei a amar-te, não te esperei no inferno. Pois inferno fizeste tu em vida. Por isso abandono-te da forma mais 'fácil': matando-me. Estou farta desta vida, por muito que te ame. Escrevo esta carta em lagrimas por não te conseguir suportar mais. É-me difícil, mas aqui estou eu, pronta. Tomo este veneno que, em pouco tempo, há de fazer efeito. E aqui te deixo, só...

Desamparada

A noite tinha-se posto e não havia mais luz naquele lugar. Mariana sabia que estava na hora de partir. Tinha de voltar a casa. Mas apetecia-lhe tanto ficar a observar aquele céu estrelado... Da sua casa não o veria tão bem. Mas tinha dois filhos para alimentar. 'Responsabilidades primeiro', pensou Mariana. Voltou, vagarosa, sabendo que teria de ser assim. Chegada a casa, encontrou uma grande confusão. Não havia ponta por onde se lhe pegasse. O que vale é que já tinha o jantar preparado. Arrumou o que pode e pôs o jantar na mesa para os filhos. Saíra por uma hora e era isso o que deixavam. Mariana não tinha tempo a perder. Enquanto os filhos jantavam, Mariana ia arrumando as coisas. Quando finalmente o fez, era tempo de deitar os filhos. Ela sabia que ia adormecer com eles. Não iria jantar, como sempre. Não dava, tinha de ser mais ativa. Foi preparar um café mesmo antes de os deitar. Fraco, para não ficar acordada muito tempo. Após adormecer os filhos, sem dormir também, foi então jantar. Pensou na vida, como era difícil, ali, no campo. Mas tinha sido ela que a tinha escolhido assim, para fugir a um marido violento. Pensara que era o melhor... Não tinha saudades do marido, mas sim da vida facilitada que tinha na cidade, perto dos seus parentes. Mas eles haviam escolhido virar as costas a Mariana quando mais precisou. Essa era a sua vida agora, longe de tudo e de todos. Nunca a encontrariam naquela ilha, no meio do campo. Só tinha saudades... Era só isso. Quando deu por si era já meia-noite. 'Jesus, como demorei tanto?', pensou. Foi se arranjar para dormir, e foi para a cama, de seguida. Enquanto demorava a adormecer, pensou em como a noite estava apetecível... Morna, aquecia o espírito de Mariana. Ela sentia saudades de ter um relacionamento, não o podia negar. Estar ali, no meio do nada, era um sufoco. Mas os seus filhos estavam primeiro. Quando o agora ex-marido os ameaçara matar, Mariana não teve outra escolha senão fugir com eles, esconder-se do mundo. Eles estavam bem, já não se lembravam de nada. Pelo menos assim aparentava. Mariana foi vê-los. Dormiam calmamente. Nada lhes iria correr mal naquele lugar. O que lhes poderia acontecer, afinal? Ali estavam protegidos. Havia uma vizinha que sabia toda a verdade. Ela jurara segredo, mas podia apostar que todos os outros também já o sabiam. Mas havia de correr mal, não, nada. Fechou os olhos. Mal sabia ela que era a última vez que o faria. Não devia ter deixado a janela aberta, nunca...

Verdade Escondida

trovoada adivinhava-se terrível. Alexandra tinha ainda coisas a fazer. Achou por bem ir deitar-se mais cedo, fazer as coisas de madrugada, quando a luz voltasse. Afinal, tinha de se levantar cedo, mesmo. Tinha de visitar a sua avó ao lar. Tinha sido ela que a havia criado Alexandra, a sua mãe tinha morrido em nova. Era hora de dormir... Pelas quatro da madrugada, despertou. Alexandra verificou a luz. Acendeu. Ela levantou-se, lavou a cara e foi tratar das tarefas. Tentou não fazer muito barulho, mas isso parecia uma tarefa difícil. Mas tinha de se despachar, tinha de apanhar o comboio bem cedo. Por volta das seis da manhã estava despachada. Foi-se arranjar para estar pronta até às sete horas. Ainda queria algum tempo livre para beber café e relaxar. Eram 8 horas e já estava ao pé dos comboios. Seria um longo caminho até ao lar da avó. A seguir teria de apanhar o autocarro até à sua terra e caminhar até à casa (que estava vazia) da avó. Chegada lá, ainda tinha de fazer limpezas da casa. Por sorte ainda tinha a àgua e luz ligadas, que Alexandra pagava com esforço. O gás era de botija, ainda demorava a acabar. Mas chega de pensar em futilidades, pensou. Tinha de ir visitar a avó antes das limpezas. Pronta para sair, caminhou até ao lar. O lar ficava numa rua desolada. Era apenas uma casa já antiga. Não tinha dinheiro para a pôr num lar mais recente, com mais condições. Chegou lá e pediu para falar com a avó, informando o nome. Dirigiu-se à sala de espera, que costumava estar abarrotada mas nesse dia estava vazia. A sala era pequena e mal aquecida. As janelas eram antigas, deixavam entrar o ar. Finalmente chegou, numa cadeira de rodas empurrada por um funcionário de mau humor. Deixou-a ali, ao abandono. O que vale é que era um dia de sol, os outros utentes deviam estar no quintal. Reparou na falta de limpeza da sala, na falta de ventilação, nas paredes cheias de caruncho. Pediu perdão à avó por tê-la de deixar ali, não havia mais dinheiro para a pôr noutro lar. Suspeitava que o lar disse clandestino, mas não tinha hipótese senão deixa-la ali. Pediu perdão, perdão, perdão. A sua avó disse que a perdoava, mas descreveu várias situações onde era maltratada. Alexandra chorava junto com a sua avó. Chorou até à hora de saída. Veio o mesmo funcionário mal-humorado avisar que era hora de saída. Levou a avó de Alexandra e saiu. Alexandra ficou mais um pouco, limpando as lágrimas. 'É aqui que mereces estar, avó', disse para si mesma. 'Por todo o mal que me fizeste, é aqui que mereces estar'. Alexandra sorria enquanto saía. Passou pela receção, onde agradeceu por tratarem tão 'bem' a avó...

Inspiração

Aqui estou eu, marcada. Tenho 12 anos. 12 anos de sofrimento, diria eu. Não me lembro de quando aconteceu pela primeira vez. Os meus pais parecem não gostar de mim. A minha mãe mal me liga e bate-me. O meu pai viola-me, noite sim, noite sim. Ele diz para não contar a ninguém, ameaça-me. Mas aqui estou eu, a confessar os pecados dele. Estou sozinha, não tenho irmãos. Talvez até seja uma coisa boa, não têm de sofrer como eu. Acho que não suportaria que alguém sofresse como eu. Tenho notas baixas, pois não me consigo concentrar nas aulas. Tenho dores e durmo mal. Não sei que fazer mais. O período veio-me aos 11 anos, mas à dois meses que não me vem. Tenho medo de estar grávida. Foi o meu pai, disso não há duvida. Não sei a quem falar, por isso decidi tornar publico. Assim, pode ser que alguém me venha salvar desta família. O meu avô morreu à semanas atrás, só me resta uma avó. Mas não posso falar disso com ela. Já tentei, mas ela defende sempre o meu pai. E, se falo das sovas da minha mãe, a minha avó vai falar com ela. O que significa mais porrada. Estou só neste mundo, é a minha sensação. Não sei a quem me dirigir, mas, venha quem venha, só quero que saiba que o mundo é uma desilusão.

Injustiçada

Bruna olhava pela janela o pequeno bosque desolado. Estava trancada no seu quarto, outra vez. os seus pais assim o tinham determinado. apenas porque pedira para sair com as suas amigas. Não pudera nem terminar a refeição. 'Para saberes que, quanto te sobrar para festas, faltar-te-á para comida', dissera sua mãe. os seus pais eram ríspidos demais, em comparação com os das suas amigas. Todos pareciam agradáveis... Pelo menos as suas amigas assim os descreviam. Quem lhe dera poder sair. Se o seu quarto não ficasse no primeiro andar... Pensando bem, a queda não seria assim tão grande. Não, mas que estava a pensar!? Mas porque não fugir? Só não seria nessa noite. Pela madrugada abrir-lhe-iam a porta. Nessa altura poderia sair. A sua mãe ainda estaria na cama e o pai prestes a sair para o trabalho. Ela despertava sempre que ouvia a porta a ser destrancada. Começou a preparar a mochila, tirando os livros escolares e colocando duas mudas de roupa. Ainda bem que a mochila era grande, ainda tinha espaço suficiente para colocar comida. Agora só tinha de esperar que chegasse a madrugada. deitou-se vestida com uma nova roupa, para que poupasse tempo. 'Clique', fez a chave. Conforme o fez, Bruna despertou. Esperou pelo som da porta a bater no andar de baixo e levantou-se. fazendo pouco barulho, saiu do quarto. Dirigiu-se à cozinha, onde tirou alguma comida dos armários. Deixou-os abertos, para não fazer mais barulho. Saiu de casa sorrateiramente, com a mochila pesada às costas. Ainda estava a amanhecer quando saiu. As cores da madrugada eram lindas, pensou. Mas não podia ficar ali a observar. tinha de andar, e depressa. Havia pouco trânsito, a maior parte dos seus vizinhos ainda dormia. dirigiu-se ao bosque mais longe de sua casa. Aí estaria protegida, iria até onde o bosque a levasse, mesmo que fosse a lugar algum. A liberdade recém-adquirida estava a dar-lhe adrenalina. Bruna ficou mais atrevida e decidiu caminhar até à aldeia mais próxima. demorariam horas até que dessem falta dela. Bem, nem tanto assim. Quando a sua mãe a fosse acordar, daí a uma hora, saberia que ela tinha desaparecido. Bruna apressou o passo. Apesar de estar perto do bosque, decidiu ir perto da estrada. Só assim se podia orientar. Ia no percurso à duas horas quando ouviu o telemóvel. Devia ser a sua mãe. Nem olhou para saber quem era. Já deviam saber do seu desaparecimento. Continuou a andar, apressando o passo. Quando deu por si, um carro da polícia ia a seu lado. 'Oh cachopa, não estarás perdida?', perguntou o polícia. Bruna nada respondeu. Estava com demasiado medo, medo que a levassem de volta. Mas não lhe deram hipótese. Bruna foi obrigada a parar. Forçaram-na a ligar para os seus pais. Bruna sentia frustação pela fuga inacabada. Os polícias disseram que a levariam a casa. 'Não', queria ela poder dizer. Não podia imaginar o castigo que iria apanhar. Sabia que ia ser castigada, isso era certo. Quando chegou a casa, o pai já lá estava, claro. Bruna sentiu medo. Abraçou o pai e a mãe à frente dos polícias. Esperou dentro de casa, enquanto eles falavam. Bruna tinha fome, não tinha comido nada de manhã, no meio da pressa. Mas estava com demasiado medo de comer. Podia levar uma chapada por o fazer. Finalmente os seus pais chegaram a casa. Mandaram-na de imediato para o quarto, sem comer. Disseram que iam ligar à escola, dizer que nas próximas duas semanas não iria lá. Que ela veria o que lhe ia acontecer. A princípio, aguentou bem o dia. Esperou pelo anoitecer para dormir de madrugada acordar com o tal clique. Acordou eram nove da manhã. Estranhando, dirigiu-se à porta para sair. Não! Estava trancada! Como era possível? Ela queria sair. Tentou empurrar a porta, gritou em desespero. Nada, não se ouvia nada. Era como se tivesse sido abandonada. Estava com tanta fome... O desespero preencheu-a durante dias, até ficar sem forças... Seu corpo foi encontrado pela família, um mês mais tarde, quando os seus pais regressaram. A causa de morte foi considerada um lamentável acidente...

Coberta de sangue

De manhã, Ester levantou-se animada. Tinha tido a melhor noite até então. Nesse dia não iria à escola, fruto da 'festa' que tinha ocorrido na noite anterior. Foi preparar o seu pequeno-almoço, silenciosamente. Não queria fazer mais barulho, o da noite anterior tinha sido suficiente. Satisfeita com a refeição, foi-se arranjar. Não que pensasse em sair. Não, pensava em ficar em casa o dia todo. Queria desfrutar do silêncio. Como era bom. Nunca se tinha divertido tanto quanto na noite anterior. Saiu do banho relaxada. Limpou-se à toalha, deixando-a vermelha. 'Vermelho é uma boa cor', pensou. Não ligando mais ao facto, Ester foi se vestir. De repente, ouviu alguém tocar à campainha. 'Que desagradável', pensou. Espreitou à janela do quarto para ver quem era. Era um vizinho. Possivelmente queria saber algo sobre os barulhos da noite anterior. Bem, Ester não estava com muita vontade de dar respostas, por isso ignorou o vizinho. Não queria ser incomodada. Começou a cantarolar enquanto o vizinho insistia. 'Que chato', pensou. Não podia ouvir uns gritinhos que tinha logo de saber o que é que se passava. Por fim ouviu um grito. Que seria? Teria visto algo na sala? Realmente, ela estava suja. Suja do sangue da sua família. For aí, ao jantar, que iniciara o ataque. Estava farta que discutissem pelas suas más notas e faltas. Tinha ido à cozinha pegar numa faca grande e cortara-lhes os pescoços, um a um. A sua increbilidade tinha ajudado. Enquanto lhe gritavam, 'Mas que fizestes!? Mas que fizestes!?', ela ia matando a família toda. Apenas tinha conseguido levar o corpo do pequeno irmão para cima, onde o ensanguinhou e se banhou no seu sangue, essa manhã. Em breve a polícia estaria ali. Em breve a veriam, coberta do sangue do irmão. Ester estava nem aí. Não lhe importava mais nada. Simplesmente queria silêncio...

Catarina

Enquanto esperava que o temporal passasse, Catarina ia bebendo uma chávena de chá quente. Que pena ela não ter lareira em casa, o primeiro piso de um prédio não o permitia. Mas, enfim, o aquecedor desenrascava. No entanto, tinha de o desligar. Odiava as contas da luz, no inverno. E odiava mais ainda que o seu noivo se demorasse no café. Tinha saído do trabalho há quase quatro horas. Desde quatro horas que o esperava. Só não ia ver dele porque não tinha carro. Ele tinha-o levado. Sempre a mesma coisa, a mesma história. Estava tão farta. Só estava com ele por estar grávida. Desconfiava que ele também. Suspeitava, também, que ele andava a traí-la. Não era de estranhar, derivado das saídas até tarde e constantes mensagens para uma tal de Paula. Apenas tinha-as apanhado uma vez, o suficiente para ficar com a pulga atrás da orelha. Bem, Catarina não queria pensar mais nisso. Estava farta de esperar. Estava na hora de fazer o jantar. Antes de engravidar, mal sabia cozinhar. E também pouco o fazia. Agora, querendo ser melhor mãe do mundo, lia as receitas e deliciava-se em fazê-las. Hoje ia ser caldeirada. Nada de muito confuso. Comprara um conjunto de peixe embalado já pronto para pôr ao lume. Só esperava que ele não chegasse demasiado bêbado para jantar. Se é que não chegasse com ela já deitada, obrigando-a a levantar para lhe dar o jantar. Chato naqueles momentos, odiava isso. Mais calma, tentou lhe ligar para saber quando chegava e onde estava. Nada, não atendia. Era impossível viver assim, sempre na duvida. Ela, mais do que nunca, queria sair daquela situação. Mas não podia, pela bebé. Sim, era uma menina. Ia lhe pôr o nome de Bruna. Ele não gostava, chegaram a discutir forte e feio por causa disso. Ele queria que tivesse o nome da mãe dele: Maria. Ela nem morta lhe poria esse nome. Disse Bruna e pronto. Não havia mais nada a discutir. Ele, chateado, havia saído de casa. Quando voltara, nesse dia, não lhe falara mais. Passados uns dias voltara-lhe a falar, mas não discutiram mais o nome da criança. Estava decidido, segundo Catarina. Mas não voltara a puxar o assunto. Já passava da meia noite quando ele chegou. Deu por ele pois fazia um barulho desgraçado. Parecia que não via as coisas. Como hábito, Catarina levantou-se para lhe ir aquecer o jantar. Nem ligava mais aos objetos que atirava ao chão com a sua locomoção desajeitada. Depois limparia a casa e apanharia os cacos, outra vez. Oxalá ele pisasse algum e ficasse calmo por uns dias. Se bem que, tê-lo por casa era sempre enervante. E, nesse estado, deveria ser impossível. Não poder fazer nada e querer ir ao café... Não, ia já apanhar os cacos. Passou por ele sem lhe dizer nada. - Então amor, não me dizes nada. - Que queres que eu diga? Estás bêbado, como sempre. Telefonei-te e não atendeste. - Desculpa, amor, não ouvi. Tens o jantar pronto? - É claro que tenho. À horas! Mas tu não apareceste. Está a aquecer no micro-ondas neste momento. - Desculpa, amorzinho. Juro que vou mudar. - É bom que mudes. Estou a ficar farta. - Não fiques assim, querida. Eu mudo, juro-te. - Vai mas é comer, que já não posso ouvir-te dizer disparates. - Está bem, querida. Catarina continuou a limpar os cacos, enquanto ele ia buscar o prato com a comida ao micro-ondas. Subitamente, ouviu o prato a estalar-se no chão. Não, ela é que devia ter ido buscar o comer. Mais uma vez, havia partido algo. Catarina, com os cacos na mão, foi ver o que se passava. Ele tinha caído ao chão. Irritada, nem pensou duas vezes. Deixou cair ao chão uns cacos, menos um, grande e grosso. Com esse, começou a atirar ao noivo. Ele, sem reação por causa da bebida, mal teve como defender-se. Cortou-lhe a jugular do pescoço com uma intensa força, vinda das profundezas da sua raiva. Ele levou a mão ao pescoço e disse: - Porquê me fizeste isso? E, pouco depois, perdeu os sentidos. Não, será que estaria morto? Ela não sabia. Catarina, agora confusa com o que tinha feito, deixou cair o ultimo caco. Que seria dela e da bebé? Tinha de fazer algo. Chamou uma ambulância e afirmou que ele se tentara matar. A polícia, ao ver sangue nas suas mãos, não acreditou. Levaram-na e detiveram-na, até que ela confessou. Fingindo-se de louca, conseguiu evitar ir para a prisão, a principio. Sabendo que a bebé poderia ser dada para adoção, fez com que a guarda futura fosse para a sua mãe. Agora seria esperar até ao nascimento. O noivo de Catarina nunca chegou a recuperar dos ferimentos, morrendo já no hospital. Por isso ela iria ser julgada de homicídio voluntário. 'Mas como é que eles adivinharam que eu o matei durante uma fraqueza dele?', pensou Catarina. Isso nunca iria descobrir.

Mariella

Era tarde quando Mariella decidiu ir dormir. Detestava a casa da avó, cheia de barulhos antigos. Era de madeira, o que aumentava os barulhos habituais. Mariella despiu-se rápido e enfiou-se na cama. Estava sem bateria no telemóvel e havia poucas tomadas na casa, pelo que não tinha com ela. Odiava tudo naquela casa, desde sempre. Apenas a presença da sua avó a tornava suportável. Mas agora tinha falecido... Mariella era obrigada com a sua família a dormir lá, já que moravam noutra cidade e não tinham outra residência na terra da avó. De repente ouviu um barulho. 'Deve ser só um rato', pensou. Sabia que havia ratos ali, já os tinha visto. A avó bem que tentava livrar-se deles, mas sempre escapava algum. Mariella, ainda assim, acreditava em espíritos. Havia demasiados barulhos estranhos naquela casa. Nunca tinha visto nada, claro. Mas isso não lhe tirava o medo... De repente, pareceu-lhe ver uma sombra. Não, era apenaso reflexo de um carro a passar. Tentava adormecer quando lhe pareceu ouvir um barulho vindo da cozinha. Quer disse um rato ou um espírito, o medo era igual. Enfiou-se mais dentro dos cobertores. Sabia que os pais eram pragmáticos, não acreditavam em espíritos. Mas Mariella acreditava. Dormir naquela casa durante as férias escolares não tinha ajudado. Mariella estava farta de ter medo, iria à cozinha ver do telemóvel e a raiz daquele barulho. Levantou-se com cuidado. A cama fazia barulho. Ela não queria despertar os seus pais com os seus medos. Decidiu deixar a porta aberta, para não fazer mais barulho. Desceu as escadas com cuidado. Ouviu outro barulho vindo da cozinha. A sua pele arrepiou ao ouvi-lo. Calmamente dirigiu-se à cozinha... Era apenas uma janela aberta. Foi fechá-la e verificou o seu telemóvel. Estava carregado. Desligou a ficha e pegou no telemóvel para se ir embora. Virou-se rapidamente e ficou cara a cara com a sua falecida avó. Não se conseguiu conter e gritou. O espírito da sua avó desapareceu conforme gritou. Os seus pais rapidamente vieram e reclamaram por ela não estar deitada, como devia ser. Mariella não lhes falou no encontro, com medo de mais reemprensões. Foi-se deitar e tapou-se bem, com medo de mais aparições...

Laura

Estava escuro. Laura não sabia para onde se virar. Ouvia vozes ao fundo a troçar dela. Estava encurralada. Não haveria um herói que a fosse salvar, tinha de se safar sozinha. Viu uma rede. Era a sua única hipótese, escalar aquela rede com arame farpado. Isso ou deixar-se atacar, novamente. Estava farta do bullying de que era alvo. Não tinha amigos, só gente daquela a atacá-la. Não sabia mais o que fazer. Começou a escalar aquela rede com alguma dificuldade. Escalagem nunca fora o seu forte. Mas era a sua única hipótese de se safar, tinha de conseguir subir. Eles tinham chegado. - Onde pensas que vais? Vem cá abaixo para nós falarmos um pouco, não te fazemos mal. - Disse um. - Sim, nós não te vamos fazer mal. - Disse outra. Nem sequer sabia o nome deles, apenas que mentiam. Da última vez tinham-na deixado toda negra, por sorte não fora ao hospital. A sua mãe agira. Ficaram suspensos por uma semana. Esta era a sua vingança. De repente, apareceram uns cães do outro lado que rosnavam intensamente para Laura. Laura não sabia o que fazer. Se atravessasse o arame farpado, ia não só rasgar a sua pele como ser maltratada pelos cães. Após algum tempo de ponderação, decidiu que o melhor era voltar para trás. Os outros ainda lá estavam. Laura estava prestes a fazer um sacrifício. Tentou imaginar que não era ela, enquanto lhe batiam. Era outra, era ela, não Laura. No final tinham-lhe partido um dente e deixando-a toda negra a um canto, sangrando. Laura não se conseguia levantar, nem sequer mexer. Podia ser que a encontrassem. Podia ser que não. Podia ser que desaparecesse ali.

Célia

Estava escuro. Célia não queria estar ali. Era sempre o mesmo. O escuro penetrava no quarto. O frio chegava, pesado. Depois, quando era bem tarde, ele vinha. Começou por espreitar apenas o quarto. Mais tarde aventurara-se a entrar no quarto, observando-a. Não tinha sido uma ou duas, mas muitas vezes, tinha-o visto ali, parado a observá-la. Ela sentia calafrios cada vez que o via. Escondia-se debaixo dos cobertores para não o ver. Tinha medo. Ainda não se habituara a viver ali. Tendo crescido num orfanato, um quarto para si, em silêncio parecia-lhe assustador. A sua nova família era simpática, mas sentia-se demasiado envergonhada de ir para a cama dos pais. Ele estava ali, agora. Sentia medo. Que será que faria? Ficaria a observar, apenas, ou avançaria, como já o havia feito? Célia não lhe conseguia ver a cara, estava demasiado escuro. E ela demasiado temerosa para acender a luz. Tinha medo que a tentasse tocar, outra vez. Que se deitasse com ela, que lhe tapasse a boca enquanto a... Não! Não queria pensar nisso! Tinha sido um pesadelo, com certeza. Apenas isso. Jamais acontecera... E, quando viu, ele estava a aproximar-se, novamente. Quando ele se deitou com ela, Célia abriu os olhos e viu o rosto do pai...

Joana

Joana chegou a casa completamente encharcada. Que mau dia para se esquecer do guarda-chuva. As suas colegas ainda não tinham chegado. As três eram muito unidas, era normal que tivessem saído. Joana também estava a pensar sair. Mas sair de casa mesmo. As colegas tinham-se unido contra Joana, pois queriam pôr outra amiga lá em casa. Para isso andavam a fazer-lhe a vida negra. Mas Joana não queria saber disso agora, eram pequenas coisas. Precisava tomar um banho e vestir o pijama. Após isso, foi preparar o jantar. As colegas chegaram, entretanto, divertidas. Traziam a sua 'substituta' e enfiaram-se num dos quartos. Tentou ligar ao namorado, mas ele nem atendeu a chamada. Estava de tudo, das colegas, que faziam barulho em demasia, e do namorado, que não lhe atendia as chamadas. Deixou o telemóvel no quarto, trancado, e continuou a fazer o jantar. Depois de isso feito, e de ter jantado, foi para o quarto. Olhou para o telemóvel. Ainda nada. Ele ia ouvi-las, ai ia. Conseguia ouvir as colegas a rir-se entusiasmadamente. Joana sentiu raiva, sentiu que se riam dela. Decidiu ir dormir e não pensar mais no assunto. Afinal elas não podiam saber que Joana estava zangada com o namorado. Era madrugada. Porque acordara? Estava a ouvir sussurros. Uma das colegas estava a ter relações. Tentou ignorar, mas apetecia-lhe tanto que o namorado estivesse ali. Até lhe pareceu ouvir a voz dele... Estranho, era mesmo parecida a voz.... Era ele, mesmo! Com a sua colega. Joana sentiu-se enraivecida. E com vontade de chorar. O que iria fazer? À três dias que ele não lhe falava. Queria dizer isso que tinham acabado? Sim, definitivamente. Não tinha mais nada a dizer a ele. Mas ia-se vingar dela. Esperou que acabassem e que ele se fosse embora. Quando o fez, Joana levantou-se. Foi procurar a faca de mato que o pai lhe tinha oferecido. Encontrando-a, levou-a consigo. A porta da colega estava entreaberta. 'Que queres', perguntou a colega; 'Ele já bazou. Perdeste o namorado, foi?', riu-se ela. Joana não aguentou mais. Revelou a faca que trazia na mão e atirou-se a ela. A colega nem teve tempo de gritar, Joana cortou-lhe o pescoço. Satisfeita consigo mesma, largou a faca, e foi para o quarto, dormir. Acordou com os berros das colegas a chamarem a polícia, no dia a seguir. Sentiu-se mal por não as ter morto também...

O lobo

Lá estava ele. Não, outra vez. Aquele lobo não a deixava em paz. Por mais que se tentasse mexer para fugir, não conseguia. Estava presa. E ele aproximava-se... Estava em cima dela... Acordou. Estava suada. Há imensas noites que sonhava com aquele lobo de olhos raiados de sangue. Não conseguia descansar direito. Levantou-se e foi imediatamente tomar banho. Sentia-se tensa, mas tudo passou no banho. Todas as suas energias foram repostas. Estava um dia frio, mas o sol dava a sensação de calor. Tomou o pequeno almoço, enquanto pensava que fazer a seguir. Um dos males de ser desempregada, pensou Alexia. Não tinha nada para fazer. Mas também não lhe apetecia sair. Á algum tempo que andava com uma sensação que algo de mal estava para ocorrer. Sentia-se paranoica. Mas, ao mesmo tempo, aquela sensação não desaparecia. Há bastante tempo que dormia pouco e mal. Nem sabia como tinha dormido tanto nessa noite. Não tinha com quem falar pois a muito tempo, graças a essas paranoias, tinha perdido muitos amigos. Estava só. Mas tinha estranhas visões. Via um homem e um rapaz. Não, devia ser um sonho. Eles estavam mesmo a frente dela, a falar com ela. Mas as palavras pairavam no ar, palpáveis, em vez de ditas. Começou a acreditar nessas visões. Não mais onde se agarrar. Diziam que a iam salvar. Do quê!? Que mal estava para vir? Maldita sensação. O dia passou... Veio a noite. No dia a seguir devia ir trabalhar. Mas algo a continuava a avisar de um mal que estava para vir. Não conseguia dormir. Toda a noite sem comer, apenas bebendo água. Sem dormir. Ela 'via' alguém, que alguém a iria esperar para lhe fazer mal. Não conseguia dormir. Sentia-se angustiada, não sabia o que havia de fazer. Ela iria mais cedo que da outra vez, para chegar a tempo. Ainda tinha de percorrer um quilometro, pelo menos, até ao local do trabalho. Mas tudo o que ela conseguia 'ver' era alguém á espera dela, no caminho, num carro... As horas passavam e Alexia cada vez mais angustiada. Devia ter feito o almoço do dia a seguir, mas não conseguia. As visões sucediam-se. Que vinha alguém e iria a proteger. Alguém iria impedir que lhe fizessem mal. Mas ela tinha medo. O caminho era longo e iria completamente sozinha. Passou a hora de se levantar e se arranjar e ela sem o conseguir. Angustiada, decidiu que não iria. Iria pedir baixa por depressão. Era incapaz de sair de casa e fazer aquele caminho na escuridão completa tendo a sensação que alguém lhe iria fazer mal. Sentia-se uma prisioneira da sua própria imaginação. Mas não tinha ninguém em quem confiar. Ninguém com quem falar. Ninguém para atestar que estava a ficar louca ou lúcida demais. Não sabia que fazer.

Lúcia

Lúcia julgava que estava sozinha. Mas havia algo de estranho na casa. Lúcia tinha acabado de acordar com barulhos na cozinha. Alguém estava lá. Ela estava com demasiado medo para se levantar. Mas tinha de o fazer. Ela não morava com mais ninguém, desde que acabara um relacionamento recentemente. Então pensou se seria ele. Ele ainda tinha a chave. Lúcia tinha de se levantar, e assim o fez. Caminhou até à sala, parecendo-lhe ouvir sussurros vindo daí. 'Que estranho', pensou. Não se via ninguém. E a luz estava apagada. Dirigiu-se então à cozinha. Acendeu a luz. Nada. Não havia ninguém. E estava tudo no seu lugar. Mas Lúcia tinha a certeza que tinha ouvido algo. Como era possível? Estranhando, Lúcia seguiu para a cama. Mas não sem antes verificar a porta de casa. Conforme o fazia, sentiu um vulto a passar por trás dela. Virou-se e não vou nada. Devia ser impressão sua. Voltou para a cama. Decidiu no mínimo fingir que dormia. Enquanto o fazia, sentiu que alguém entrava no seu quarto. Sentiu-o aproximar-se da cama, respirar por cima de si. De repente levantou-se e acendeu a luz. Nada, ninguém estava ali. Como era isto possível!? Tinha a certeza, tinham respirado para cima dela. Mau, seria algum espírito? Não, não podia ser. Lúcia não acreditava em espíritos. Eram fantasia, imaginação. Alguém estava em casa, tinha a certeza. Decidiu ir investigar todas as divisões. A começar pelo quarto. Vasculhou por todo o lado. Mas não encontrou nada. Cansada, voltou para a cama. Não ouviu mais nada nessa noite. No dia seguinte levantou-se calma. Dirigiu-se à cozinha, onde encontrou todas as portas abertas. Mas que raios... Mas se não havia ninguém lá, como as portas se tinham aberto? Lúcia sentiu medo. Nesse momento recebeu uma mensagem. Era uma amiga a comunicar que nessa noite o seu ex tinha tido um acidente de mota e morrido. Lúcia ficou estática. Seria ele que tinha feito aquilo tudo, em espírito?...

Mariza

Mariza estava à espera de algo diferente. Não podia acreditar que a vida disse só assim. Livre de escolher, o destino demonstrava-se certo: o casamento. Ela queria mais. Mas nunca fora boa na escola... Com o destino selado, para alegria dos pais, Mariza preparava-se para dormir. Não se imaginava a fazer mais nada naquela noite. Seu recente marido já roncava, perdido de bêbado. Era isto o final? Seria assim o resto da vida? Que vontade louca de fugir. Começar tudo de novo, tomar um novo rumo. Mas não havia nada a fazer. A sua vida tinha terminado. Embora acompanhada, sentia-se só. Terrivelmente só. Nada a preparara para aquela vida. Era a primeira vez que saía da casa dos pais. O que devia fazer? Sentia-se uma estranha ao deitar-se naquela cama. Sentia medo do que pudesse acontecer. Nunca se havia deitado com um homem, os seus pais sempre zelaram muito por ela. Mas Mariza também era recatada, não permitia que lhe faltassem ao respeito. Mariza estava farta daquele dia. Todos pareciam estar felizes. Menos ela. Ela chorara. Tinha dito que era de alegria, quando na verdade era de desespero. Porque dera aquele passo? Antes parecia-lhe o mais ajuizado. Agora, parecia um erro. Só esperava que o marido fosse complacente com ela. Que acalmasse os nervos. Ele já lhe tinha batido uma vez. Ficara marcada na altura. Quisera desmanchar o noivado, mas a família chamara-a à razão. Não ligaram às nodoas negras, apenas à nodoa que iria provocar se desmanchasse o noivado. Agora olhava-o a dormir. Como ele ressonava. Só lhe apetecia enfiar-lhe uma almofada na cabeça, para o calar. Que raiva a tudo. Não, não dava. Tinha de sumir dali. Ir para casa dos pais. Não queria estar ali, simplesmente isso. Foi quando ele acordou. Não era possível, logo agora? Mariza começou a vestir-se à pressa, antes que ele tivesse algum ato de reação. Que sorte a sua de ter virado a cabeça e fechado os olhos. Em breve já ressonava. Não interessava mais. Com ele não ficava. Se os pais não a aceitassem iria para casa de uma amiga, até encontrar um lugar para ficar. Mas ali não ficava. Não mais. E ele ressonava... Num ápice, pegou no candeeiro atirou-o contra a cabeça dele, matando-o. Não se sentia arrependida. Era o justo para ele, nunca mais lhe bateria. Estava livre. Era tudo o que precisava.

Nossos amores do passado

O tempo é curto e só agora comecei. O nosso amor acabou e nem dei por ele. Parece-me que me passou tudo ao lado. Como isso é possível? Porque, talvez, para escapar ao sofrimento que me fizeste passar, deixei de absorver as tuas palavras para passar a ignora-las. Se te fiz feliz? Não sei, mas espero que não. Pois tu desiludiste-me. E, a partir daí, despertaste raiva em mim. Espero que tenha desapontado. Para que nunca mais faças o mesmo a alguém. Escrevo-te esta carta com a confiança que venhas a saber: odiei-te com todas as minhas forças, desejei-te o pior dos males, para agora seguir sozinha. Pois estou só, como nunca quis estar. E, agora, tenho-te a ti. Não como namorado ou amante. Mas como amigo. Piadoso, talvez. Perdi o melhor da minha vida enquanto te odiava, como com uma ferida aberta que nunca sara. Envolvi-me em confusões, menti (sem o saber), dei em louca... E aqui resto eu, um pedaço do que fui. Que confusão a minha vida está. Tu dirás que passa com o tempo. Mas eu sei, eu reconheço esta vida do passado. Eu sei que não. Tudo continuará igual. Tenho de lutar para mudar a minha vida, tal como tu lutas e lutaste. Recuperar o que perdi não é opção, isso é passado. A partir de agora apenas me resta o presente e o futuro. Ter sonhos românticos já não faz parte de mim, apenas me interessa escrever... Dar uma satisfação ao publico que acolhe as minhas escritas. Por mim eu luto, por eles, por ti... Luto para sair do poço em que me enfiei. Pois é assim que me sinto, a maior parte do tempo. E o nosso amor cambiou, mudou de expressão. De amor a amizade. Passando pelo odio. Aqui sigo com as minhas escritas e tu com o teu trabalho. Cada um tem o seu plano, nenhum passa por seguirmos juntos...

Núria

Núria escondia-se atrás de uma árvore. Não queria ser vista por ninguém. Sentia vergonha de si mesma. Enquanto esperava que as pessoas passassem para poder regressar a casa, pensava em tudo o que se tinha passado. Eram quase 6h da madrugada. Os seus amigos haviam a deixado sozinha. Nunca se devia ter separado deles, nunca. Agora estava destroçada. O que iria fazer? Nunca havia experimentado droga antes. Até aquela noite. Que erro. Se soubesse quais as consequências... O que tinha tudo para ser uma noite de arromba tinha lhe corrido mal. Não se lembrava de grande coisa, mas os rasgões da sua roupa indicavam que algo de mal se tinha passado. Tudo o que Núria queria era chegar a casa. Os seus pais deviam estar a despertar e ela ali, naquele estado. Ela não queria que a vissem assim. Tinha de tomar coragem e ir para casa. Ninguém mais se encontrava na rua agora, apenas ela. Recompôs-se e saiu de detrás da árvore. A casa de Núria ficava a apenas alguns metros. Núria correu até lá. Finalmente em casa. Fechou a porta com pouco barulho, para não dar nas vistas. Ouviu barulho. Vinha da cozinha, sua mãe estava lá, decerto. Tinha de tirar os sapatos para não a ouvirem enquanto ela subia as escadas. Tudo bom, conseguiu chegar a seu quarto sem ser escutada ou vista. Deitou-se na cama. Chorou desconsoladamente pela noite perdida. O que se havia passado de facto? Porquê os amigos a haviam deixado só? Não se lembrava de nada. apenas de tomar o tal comprimido e, depois, de acordar a um canto da discoteca com a roupa rasgada... Núria achava que devia de ir ao hospital fazer exames médicos. Mas sentia vergonha. Afinal, tivesse o que se tivesse passado, a culpa era dela. Ela é que decidira tomar o tal comprimido. A responsabilidade era dela. Bateram à porta. 'Quem é?', indagou Núria. 'É a mãe. Já estás acordada?' 'Não, ainda vou dormir um pouco.', respondeu Núria. Era o melhor que tinha a fazer. Dormir. talvez o estranho mal-estar passasse. Mas, antes, decidiu ir tomar banho. Cheirava a discoteca. Terminado o banho, foi-se deitar novamente. Só lhe apetecia dormir... Estava a ter um sonho estranho quando acordou com o despertador. Tinha-o posto para as onze. Dormiria o resto à noite. Era horas de se levantar e fazer alguma coisa. Olhou para o telemóvel. Nem uma mensagem dos seus amigos. Nada, haviam-na abandonado de vez. Ela só queria saber o que se tinha passado. E se nunca o descobrisse? Mas Núria não iria ceder. não iria ligar para eles. Eles sabiam o que se tinha passado, eram eles que lhe deviam ligar. Ela só queria saber a verdade...

O meu sentir

Aquilo que mais queria dizer ficou entalado em mim. As palavras sem sentido correram, desenfreadas. Eu estava em lagrimas. Tinha acabado, finalmente. Todo o sofrimento por que eu havia passado não tinha valido a pena. Sentia um vazio em mim que se preenchia com ar. Estava livre das dores, dos desânimos, dos desgostos. Se valeu a pena? Não. Sinceramente, essa é a minha opinião. Mas há que passar pelas tragedias para saber o que nos espera. E o que me espera é a liberdade... Decidi sair de casa. Estava cansada de estar fechada. Queria sentir o sabor do vento na minha face. Apesar do frio que se fazia sentir, não resisti. O tempo era o menos, o mais importante era o equilíbrio emocional. Eu, Ester, estava livre de vez. Tudo não tinha passado de um mau sonho. Livre, sim. Não apenas solteira. O que fazer agora com tanto tempo? Esta manhã abri a janela e tudo me parecia diferente. Como o mundo mudou enquanto eu não o observava. Eu podia esperar muita coisa, mas não isto. Onde andava eu com a cabeça? Nele, claro. Que tonta que fui. Decidi que hoje não me preocuparia com nada de casa. Hoje era só eu. Saí, respirando o ar frio e puro. Que alegria. Agora estava feito. Tinha passado o encantamento. Dei por mim observando o rio, invejando a sua rebeldia. Sempre certinha, eu era incapaz de me revelar por completo. Eu, Ester, tinha de mudar. Nada como começar de dentro para fora. Eu irei mudar, eu sei.

Rocio

Rocio mexeu-se. Acordara finalmente. Deu uma olhada em redor. Estava solta. À dias que estava ali. Quantos eram, exactamente? Cinco dias, pelos arranhões que tinha feito na sua própria pele. Aproveitou para se levantar. Odiava aquela sala. Tanto já havia vivido ali... Ele tinha-a cortado, mas Rocio ainda conseguia andar. Não sabia onde se encontrava. Tinha sido para ali levada de olhos vendados. Tudo por causa de uma boleia. Nunca lhe passara isso pela cabeça, mas os amigos tinham-na deixado no meio do nada. Cinco dias. Ninguém devia sentir a falta dela. Morava sozinha, trabalhava num call center, os amigos tinham-na deixado... Tudo lhe corria mal. Naqueles dias tinha sentido o maior terror da sua vida, e ninguém ligaria a ela. Enquanto pensava isso, procurava uma saída. As janelas eram demasiado altas, no meio do entulho havia pouco que a pudesse suster. Só se conseguisse mexer a maca... Mas, mesmo que pudesse mexe-la, não conseguiria abrir as grades. Ele tinha levado as 'ferramentas'. Não teria tempo para procurar no meio do entulho, mesmo que quisesse. Havia duas portas. Rocio ainda não as havia tentado, com medo que fossem um engodo. Tentou abrir aquela por onde o via sair. Nada. Nem se mexeu. No entanto, pareceu-lhe ter ouvido passos. Com medo, correu para a outra porta. Abriu-a com facilidade. Mas, quando viu, o chão estava coberto de vidro. Rocio estava descalça. De repente, ouviu a porta atrás dela a abrir-se. 'Com dificuldade em escolher?', disse ele, rindo-se. Rocio sabia que não tinha hipótese, estava demasiado fraca por aqueles cinco dias sem comer. Ele apenas lhe dava água, para que ela aguentasse mais um pouco... Quando ele se aproximou, Rocio pegou na faca que ele trazia e espetou-a no seu peito, morrendo quase de imediato. 'Não, porquê? Eras a minha obra de arte!', disse ele, olhando para o corpo da jovem Rocio... Pegando no corpo, levou-o pela porta de onde tinha vindo, até à rua onde tinha o carro estacionado. Colocou o corpo de Rocio embrulhado num oleado no porta-bagagens. Chovia desoladamente naquela noite. Aquele armazém ficava longe da cidade, mas ele não queria depositar o corpo lá, chamar a atenção sobre o local. Vestiu o casaco, que havia deixado no carro, pois estava frio. Iria deixar o corpo onde a havia encontrado, na berma da estrada. Ali não o preocupava que a encontrassem. Ali não a ligariam a ele. Iria deixa-la e partir. Somente isso.

Um arrepio

Um arrepio percorreu a espinha dela. Não podia acreditar no que tinha presenciado. Agora que o silêncio se tinha instalado na casa, Natália deixara se ficar debaixo da cama, aguardando. Estavam todos mortos. Porquê? Não sabia que se os seus pais tinham inimigos. E porquê matar os seus irmãos mais novos? Seria isso que estava destinado a ela?
Natália estava em choque, não conseguia chorar. A cena era demasiado macabra. Quase os tinham decapitado. Sentia raiva aquela casa, demasiado longe de tudo. Era a casa de ferias, para onde iam às vezes, nos fim-de-semanas. O seu refugio tinha-se tornado um lugar de morte. Ela teria de andar quilómetros até arranjar ajuda. Isso se ela conseguisse escapar. Eles andavam de um lado para o outro, como que a verificar se a casa estava mesmo vazia. Um deles entrou no quarto. Ia a verificar debaixo a cama quando foi chamado. Natália sentiu-se aliviada por ter escapado.
Subitamente, ouviu todos a dirigirem-se para a porta e a irem-se embora. Ficou debaixo da cama. Só muito depois de ouvir os seus carros partir é que saiu de onde estava. O cenário era horrível, parecia sair daqueles filmes de horror. Sabia que era inútil tentar usar o telemóvel ali, não tinha rede. E também tinham cortado os fios dos telefones. Não podia aguardar, tinha de ir. Correu quanto pode até perder as forças e ter de caminhar. A lua ia alta, iluminava-lhe o caminho. Fazia frio, e Natália apenas tinha um casaco leve. Esquecera-se de como as noites eram frias ali. Como seria de esperar, nenhum carro passou. Tirando os seus pais, ninguém se lembraria e ir para ali em pleno inverno. Ainda bem que não nevava, seria ainda mais difícil caminhar. A noite estava quase no seu fim quando viu luzes ao fundo. 'Que alivio.', pensou Natália. Sentindo-se com forças renovadas, começou a correr até lá. Logo que chegou a primeira porta, bateu com toda a força que lhe restava, e gritou. Veio à porta um homem de meia idade, com cara de poucos amigos.

- O que é que você quer? Não vê que ainda é cedo?

- Desculpe-me. Ajude-me. A minha família... foi assassinada.

E desmaiou. Já tinha poucas forças e não tinha sequer jantado. O homem amparou a sua queda e levou-a para dentro, onde a deitou num sofá. Quando despertou, quis dizer tudo a correr, mas o homem acalmou-a. Ela, então, disse tudo do inicio. Quando chegou ao fim, o homem disse que ia tudo correr bem que ia chamar a policia. Deu também a indicação de onde era a casa de ferias de Natália, tal como ela lhe tinha indicado. A policia foi até lá e encontrou a casa limpa e sem vestígio de sua família. Quando Natália o soube, reclamou que o que tinha dito era verdade. A policia, sem acreditar nela, mandou-a ser internada num instituto psiquiátrico, onde ainda se encontra...

Aquilo Que Ela Não Quer Ver

Fechou os olhos. Beatriz não queria ver aquilo que não estava à sua frente. O seu namorado parecia ter se tornado um bicho. Ele, Luís, sempre tinha sido um pouco violento. Ela já sentira os seus punhos. Mas agora, de faca em riste, ameaçava-lhe matar se Beatriz não tivesse relações sexuais com ele. Há um mês que lhe recusava. Ela queria acabar com Luís. Pensou que, dessa forma, ele se cansasse dela e a deixasse. Mas, agora, ali estava ele. O brilho daquela faca assustava Beatriz, ela chorava desconsoladamente. Beatriz sabia que não tinha hipótese. Apesar da gritaria entre eles, nenhum vizinho bateu à porta. Ninguém iria ajudar, ninguém chamaria a polícia. Beatriz não tinha qualquer chance. Teve de ceder. Deitou-se no chão frio da cozinha, como ele mandava. Sentiu ele abrir-lhe o botão das calças. Sentiu repulsa pura nesse momento. Mas não o demonstrou. Não queria que ele soubesse que tinha nojo dele. Só o irritaria mais, tinha a certeza. Rasgou-lhe a camisola e arrancou-lhe o soutien. Ela, assustada, gritou. Mas não tao alto quanto quando ele despiu as suas calças e entrou dentro dela. Gritou como se ele estivesse a matá-la. E estava a morrer por dentro. Enquanto ele entrava e saía de dentro dela, Beatriz tentou apurar se ouvia algum barulho de alguma vizinha. Nada! Não ouvia nada que raiva sentia naquele momento. Por ela e por ele. Enquanto ele gemia dizendo 'Amo-te', ela era incapaz de sentir esse sentimento por ele. Sentia pena, pois ele só à força conseguia algo com ela. Pena da figura que fazia. Mas, mesmo devastada, não deixou de gritar. Alguém com coração havia de aparecer. O mundo não podia ser assim tão 'negro'. Os minutos passaram e ele parou. Deixou-se estar dentro dela, enquanto Beatriz chorava. Ninguém havia aparecido, ninguém. Beatriz não o queria por perto. A faca... ali tão perto. Com cuidado, para não o assustar, tentou agarrar a faca. Quando estava prestes a conseguir, ele levantou a cabeça e viu o que ela estava a fazer. Agarrou na faca e levantou-se.

- Isto é só para aprenderes. - Disse Luís, enquanto aproximava a faca do pescoço dela.

Beatriz gelou nesse momento. Não queria morrer. Mas Luís parecia não fazer caso do rosto aterrorizado de Beatriz. Era o fim. Sentiu quando a faca lhe cortou a garganta. Nua, com frio, com o pescoço cortado, deixou-se ficar no chão. Viu-o a partir, levando a faca consigo. Será que os seus pais demorariam muito a vir? Só eles a podiam salvar.

Ana Sophya Linares