segunda-feira, julho 16, 2018

Tudo de mim


Eu era uma jornalista de renome. Era, pois perdi-me. Tinha tudo o que podia desejar. Uma carreira de sucesso, viagens…. Só não tinha o amor. Esse, tinha o perdido, entre mentiras e falsidades. O que se passara, então? Muita coisa, muita que não queria acreditar, abrir os olhos. Só os queria fechar e não os abrir mais.
Entretanto a vida seguira. Eu cuidava da nossa filha. Morávamos na casa dos meus pais para que o transtorno da mudança não a afectasse. Sim, era feliz, à minha maneira.
Um dia, decidi que estava na altura de escrever um livro sobre a minha vida, até então. Uma história sobre as minhas aventuras nas viagens. Nada que afectasse a minha vida intima. Não queria a minha filha ou o pai dela espelhado no livro. No entanto, foi o que acabou por ocorrer. Senti-me mal e bem, por o fazer. A vida tem as suas diferentes razões…
Depois, a apresentação do livro. Ocorreu em Lisboa, a primeira, e foi um sucesso. Nem eu esperava assim tanta gente. Depois, vinha outra apresentação. No Porto. Era onde ele estava. Só rezava para que ele não fosse me ver. Ainda para mais, com a nova namorada, que devia ter os mesmos problemas de ‘saúde’ que ele, pelo que me constava… Isto, vindo da própria boca dele.
Chegou o dia e ele apareceu. Ou não tivesse a nossa filha falado no assunto para o pai. Apareceu e vinha, realmente, acompanhado. Estava preparada para tudo, menos para ser humilhada.
- Olá, Francisca. – Disse ele.
- Olá. Pretendes uma dedicatória agradável ou vens aqui para outra coisa? – Perguntei.
- Na verdade, venho aqui para outra coisa.
- Olha a novidade. – Disse eu.
- Deixa-o falar. – Pediu a namorada dele, como se fosse algo de sério.
- O que venho aqui para te dizer é que…. Tinhas razão. Eu traí-te mesmo. No dia do parto da nossa filha não te fui ver porque estava ‘ocupado’.
Calei-me. Engoli a raiva e pedi a quem me acompanhava para ir à casa de banho. Quando voltei, ele ainda ali estava. Sentei-me.
- Podes fazer o favor de sair? Tenho pessoas, humanas, para atender. Não restos de raça humana como tu. Sais por vontade própria ou é preciso chamar alguém?
- Eu saio, não há problema. Diz à nossa filha que lhe mando carinhos.
- Diz tu. Experimenta telefonar-lhe e dizer-lhe, também, a verdadeira razão porque não assististe ao parto dela. – Disse eu, em raiva crescente.
Saíram os dois. Ela nada fez, apenas assistiu. Eu queria me vingar deles. E ia consegui-lo.
Passado uns dias, ouvi o pai da minha filha falar para ela que se ia casar com a namorada. Senti cá uma pontada. Que fazia aquela relação ser diferente da nossa? Mas ia me vingar. No dia seguinte, aproveitando uns dias de descanso, contactei um detective privado. Queria descobrir tudo sobre ele. Ele não podia ter mudado tanto assim. Decerto tinha alguma amante.
Em poucos dias o soube. Ele, desta vez não tinha ninguém, além de a noiva. Bem, era altura de o ter. com a ajuda do detective privado, arranjamos uma rapariga bonita para servir de isco. Com longos cabelos loiros, um corpo de matar e olhos azuis-profundos, iria conseguir. E, em poucos dias, logro-o. Felizes com a nossa conquista, não esperávamos que a rapariga se apaixonasse por ele. Mas foi o que aconteceu. Então, a poucos dias do casamento, arranjamos forma de a convencer a ajudar-nos a acabar com o casamento. A principio ela recusou. Mas, depois de a fazermos ver que só seria feliz com ele se o casamento com a outra não acontecesse, ela aceitou. Um dia antes do casamento, ela pediu para se encontrar com o meu ex. disse que era urgente. Preparou-lhe uma bebida com comprimidos para dormir e deu-lhe. Depois, revelou-lhe que ele não iria sair dali para o casamento. Ele, caindo em sono, nem conseguia se aperceber bem do que ela dizia.
Dia seguinte. Já era tarde quando ele se levantou. Estava nu na cama da amante. Vendo que eram 10 da manhã, correu a vestir-se, mas não encontrou a roupa em lado nenhum. Acordou a amante, então. Ela avisou-lhe que ele não se casaria, que fosse nu, se quisesse. Mas ele lá arranjou uma camisa e uns boxers e saiu, pegando no carro dele.
Na igreja, vinha toda a gente a sair. A noiva, chorando, admirou-se quando viu o carro dele e pediu para toda a gente voltar. Mas ao ver o estado em que o noivo saiu do automóvel, arrependeu-se. Gritou com ele, xingou-o…. Recusou-se a casar com ele.
De longe, eu e o detective privado assistíamos a tudo, como se estivéssemos na primeira fila. Na verdade, o próprio detective privado disse que tínhamos ido longe demais. Mas eu não quis saber. Agora sim, estava feliz, ela havia provado do mesmo veneno que eu: a traição. Ele que se desenvencilhasse, eu não estava nem aí, mais.
Voltei para casa. Fingi que tinha estado numas férias no Alentejo. Os meus pais é que foram buscar a minha filha. Agora podia dizer que estava completa, com ela por perto. E eles longe…

O monstro em mim


No fundo do espelho eu te vejo. Será que te reconheço? Passaram anos e ainda vejo a criança em mim.
Ainda me lembro da brincadeira que fazíamos. De nos esconder-nos dela, debaixo da mesa, atrás da porta, no armário…. Riamo-nos tanto. Foi nessa altura que o monstro que há em mim despertou. Comecei a achar engraçado picar-te com agulhas, ferir-te com navalhas… Tu não te queixavas, sempre foste valente. Foi fácil infligir-te dor, pois, por mais que doesse, tu querias sempre mais, mais, mais…
Olho-me no espelho e vejo as marcas. Pois tu sempre foste eu…

O amor a uma árvore


Jaime cuidava do seu pomar de maçãs. Tinha muito orgulho nelas. As suas maçãs preferidas eram as vermelhas, as do amor. Doces, macias, não havia melhor.
Um dia, chegou ao seu pomar para recolher as maçãs e reparou que uma das macieiras estava marcada. Tinha um coração, com letras lá dentro escritas. Não sabia quem era o S e o L, mas decerto iria saber. Aproximou-se da macieira. Quase que sentia um coração ferido a bater. Mas quem seria que invadira o seu pomar e deixara aquela marca?
Vários dias passaram e voltou a acontecer o mesmo. Aí, enfureceu-se a valer. Nenhum empregado jamais lhe tinha visto uma face assim. Temeram por si próprios. E deviam. Pois Jaime pôs tudo a ferro e fogo, que iria descobrir quem havia feito aquilo e bater-lhe a valer.
Uma noite, decidiu ir espreitar o pomar. Conhecedor dos terrenos, sabia como ir sem fazer ruído. Levou uma pequena lanterna, para o caso de se ver atrapalhado. Acabou por apanhar um casal a fazer amor, encostado a uma árvore. Tentou ver quem era. Como não conseguia, apesar da lanterna deles iluminar o local, aproximou-se, acabando por pisar um galho. Ao ouvirem barulho, o casal parou e olhou em volta. Ao verem Jaime, atrapalharam-se.
- Então, da Vinci, eras tu que andavas a deixar marcas? - Disse Jaime para Leonardo, a quem tratava pela alcunha de da Vinci.
- Sabe, patrão, são os calores do amor...
- Os calores do quê? Eu já te dou os calores... - Disse Jaime, tentando apanhar Sara, que lhe fugia por detrás de da Vinci.
De repente, tropeçou numa raiz. Deitado no chão, nem se apercebeu que da Vinci avançava com uma navalha, a mesma com que havia rasgado a árvore. Ia quase a espetar-lhe-a no peito, quando a atirou para o lado.
- Isto.... É um aviso, senhor Jaime. Nunca mais atente contra a minha vida ou a de Sara. Pode ser errado o que fizemos, mas não merecemos essa reação. - Disse da Vinci.
Jaime acenou com a cabeça que sim, havia compreendido.
No dia seguinte Sara e da Vinci chegaram atrasados ao trabalho, mas muito seguros de si próprios. Jaime não estava, quem estava era um capataz, que os informou que estavam despedidos. Primeiro veio o choque, depois as suplicas. No fim, a conformação. Acabaram por ir embora, sob o olhar longínquo de Jaime...

Carta de um filho abandonado


Mãe, porque me abandonaste? Preciso muito de você, há tanto que preciso te contar. Preciso te dizer o que se passou comigo desde que deixaste na rua. Tenho fome, sabes? Tentei pedir comida, mas poucos me deram. Me deram dinheiro, pensei que dava para comida, mas as lojas não aceitaram, disseram que era apenas uns trocos. Saí morrendo de vergonha e esfomeado. Depois, um senhor, vendo o meu estado, me disse que sabia onde tu estavas, que me conhecia. Quis tanto acreditar! Deixei ele me levar onde ele queria. Acabamos no quarto de motel. O que ele me fez... Não há palavras para o descrever. Ele, depois me deu de comer e beber, para esquecer o que tinha acontecido e não o contar a ninguém. Mas preciso tanto contar a você, mãe, tudo o que se passou comigo.
Como estarão meus irmãos mais novos, seus filhos e de seu novo namorado? Estarão bem ou também os abandonou? Eu posso cuidar deles, se precisar. Não os abandone também, como fez comigo. Não sabe quantas vezes chorei em silêncio, sabendo que ninguém viria me salvar.
Aquele homem que dizia te conhecer vem me visitar às vezes. Me leva para o motel, me dá de comer. Eu aceito, mais ninguém cuida de mim. Diz que tem amigos que gostariam de me conhecer, que não me farão mal.
Eu sinto a sua falta, mãe. A falta de seus carinhos, de seu beijo à noite, antes de dormir. Agora minha cama é o cimento. Passo frio. Seu namorado ainda está zangado comigo, por fazer muita bagunça e comer muito? Eu aprendi a comer menos, e a fazer menos bagunça.
Vem me buscar, mãe? Eu te amo.

A vontade de morrer pode ser mais forte


Ele desejava ser livre. Ele viu a ave voando lá fora e desejou poder alcançá-la. Fechado naquela sala por opção da sua família, a vida era algo diferente. Tudo porque os médicos disseram que que ele estava doente. O seu único erro era amar pessoas do mesmo sexo. Enquanto esperava para ser enviado para algum lugar onde cuidavam de pessoas com essa ‘doença’, ele sonhava ser livre. Ele olhou uma ultima vez lá para fora e, depois, para o seu cinto, pendurado no teto. Não havia outra opção…
Não sei que ano era. Podia ser 1600 ou 1957, a mentalidade era a mesma. Tratado como se de um louco se tratasse, Diogo lutava por a sua libertação. Tinha como ídolo Federico Garcia Lorca, o poeta morto pela sua posição politica. Ou seria pela sua sexualidade? Não sabia ao certo. Só sabia que a sua leitura, naquela casa, era proibida. Tinha sido por isso que o havia descoberto. Tinham-no apanhado a ler às escondidas os seus poemas. Só por aí, deduziram que ele fosse gay. Não que ele o tivesse alguma vez demonstrado. Sempre retraído, só a muito custo (e à força de empurrão da família) se aproximava das raparigas. Queria sempre ir jogar com os rapazes. Ainda tinha duvidas quando o prenderam, mas já não. Agora sabia que era homossexual, ou lá como lhe chamavam. Diziam que era um vicio, que começava em criança que era comum em pessoas que tinham sido abusadas em crianças. Mas Diogo nunca tinha sido abusado. Simplesmente era homossexual. Era natural para ele, tal como para os demais era natural serem heterossexuais. No entanto, a sua mãe o deixava confuso. Muito religiosa, rezava muito. Mas, quando distraídas, olhava, sedenta, para os peitos das amigas. E depois rezava, ainda mais. Tinha quase a certeza que ela era lésbica, mas reprimida pelo julgamento da sociedade. Principalmente da sua mãe. Havia sido ela a determinar a ‘prisão’ de Diogo. Por isso o seu pai havia traído tanta vez a mãe. Ela recusava, dizendo por motivos religiosos, deitar-se na mesma cama que o marido. Dizia que era o pecado da carne.
Mais uma vez, olhou para o cinto. Pronto a matar-se por sua causa, enfiou a cabeça dentro do circulo que havia deixado solto. Nesse preciso momento entraram na sala. Diogo, atrapalhado, empurrou a cadeira com os pés. De imediato foi seguro pelo primo. Era ele quem havia entrado.
- Venham cá! – Disse Fernando. – Diogo, no que te metes… Não te debatas, pá!
- Larga-me… - Dizia Diogo, debatendo-se.
Depressa estavam lá os outros primos, o pai, a mãe, a avó. Rapidamente o tiraram do cinto.
- Vejam! – Começou a avó. – Isto é o sinal que o diabo está entre nós. Temos de chamar o padre!
- Mas chamar para quê! Tire essas ideias da cabeça. O rapaz gosta de rapazes, tão só. – Disse o seu pai, mais aberto ao mundo.
- Cale-se, que quem manda nesta casa ainda sou eu. Que vergonha, fui casar a minha rica filha com um desnaturado.
- Você não me chama isso…
- Ou o quê? Bate-me? Saia desta sala, agora!
O pai de Diogo ainda resmungou, mas, ao ver que não tinha apoio nenhum, retirou-se. Ele sempre achara normal o feitio do rapaz. Ele também reparara no jeito de ser da sua esposa, e não levava a mal. Mesmo assim, mesmo traindo-a, era apaixonado por ela.
- Chamem o padre, já. E prendam o Diogo à cama. – Disse a avó.
- Não, não me façam isso. Não!
Prenderam-no à cama. A Diogo só restava aguardar…
O padre chegou. Logo, sabendo pela avó o que se passava com ele e qual o sucedido que o levara a chamarem, ordenou que o fechassem no quarto com o doente. Mas antes, que lhe dessem uma larga vara, para punir o mau espirito que havia dentro de si. Assim o fizeram. Conforme iam fechando a porta, o padre ia dizendo as rezas. Conforme fecharam a porta e o padre sentiu que já estavam longe, parou.
- Com que então homossexual… Gostas de levar pelo cu… Eu vou te dar uma lição preciosa, espero que aproveites…
Conforme disse isso, tirou as calças a Diogo. Ele tentava se debater, mas só fazia pior. O padre pegou na vara e enfiou-a pelo rabo de Diogo acima, brincando com ela. Enquanto isso ia gritando rezas, cada vez mais alto, conforme os gritos de Diogo. Quando acabou, Diogo sangrava do rabo, e havia soltado os intestinos. Chamou para destrancarem o quarto, após lavar a vara com que havia penetrado Diogo.
- Não digam nada. – Disse o Padre. – O diabo saiu por o orifício que queria retirar prazer carnal, pelo rabo.
A avó entrou, temendo, para ver o resultado. Assustou-se, mas, decerto, o diabo tinha saído, tal como o padre havia dito. Agradeceu muito e ficou a observar como os primos se aproximavam dele, rindo-se da sua condição. Diogo tentava gritar ‘Ajudem-me’. Mas, por estar tão fraco, não o conseguia. Finalmente soltaram-no. Levaram-no para a casa de banho, onde lhe deram banho de água gelada. Como se não fosse só isso, não chamaram nenhum médico. Acharam que aquilo era resto do diabo que havia corrompido o seu corpo, e tão só. Que melhoraria a partir daí.
Passaram dias e ele não melhorava. Temendo verdadeiramente pela vida dele, a avó mandou chamar o médico. O homem, verdadeiro profissional dedicado à causa de cuidar dos pacientes, mas sabendo das causas que o levaram aquele estado, determinou o imediato internamento de Diogo. Ele, fraco demais para lutar, deixou-se ir.
No hospício, começaram por lhe dar verdadeiros cuidados médicos. Demorou umas semanas a sentir-se melhor, mas, quando viram que já podia andar, despacharam-no para outra secção, a dos malucos. Lá, trataram-no com o maior desprezo possível. Sofrendo às mãos dele, Diogo suplicava para que o soltassem.
- Só quando deixares de querer corromper crianças. – Respondiam eles.
Ele nem sabia o que aquilo tinha a ver com a sua sexualidade. É claro que não faria mal a crianças, nem lhe passava pela cabeça fazê-lo. Mas, cada vez mais duvidava da sua sexualidade. Talvez gostasse de raparigas, afinal. Mas era tímido, até demais. E, também, elas pareciam tão frágeis. Não sabia, na verdade não o sabia.
Passado oito meses libertaram-no, com a indicação que era impossível curá-lo. A avó, transtornada, perguntou porque não o podiam receber para sempre. Disseram que naquele hospício não aceitavam internamentos desses, que procurasse outro. Mas aquele era do Bom Jesus, era religioso. A avó não o imaginava noutro hospício. Prenderam-no, novamente, na sala, mas sem cinto. Enquanto debatiam se haviam de chamar o padre outra vez para outro exorcismo, decidiram que iriam procurar tratamento para ele na província. Naturais da beira alta, o que não faltava lá era religiosidade. Mas Diogo não aguentava mais. Ele queria ser livre. Ao jantar, esperou que a avó adormecesse enquanto o vigiava, como fazia sempre. Sem ela saber, abriu os pulsos, sangrando profusamente. E simplesmente esperou. Desta vez, ninguém apareceu, pois julgavam-no seguro com a avó…

Nunca digas nunca…


Abriu a porta e saiu, esvarocida. Não conseguia estar mais naquela sala, naquele ambiente. Tudo parecia esmagá-la. Não, não ia ser uma vítima. O seu chão podia ter desaparecido, mas não a sua vontade de lutar por algo que era seu. Por muito que custasse, ia voltar. Ia voltar ao que havia vivido, iria tornar-se 'melhor', aos olhos do marido...
Subiu as escadas e entrou, sossegada. Naquela sala estava o marido, a mãe dele e o seu pai. Cláudia não tinha ninguém a seu favor. Mesmo assim, entrou e sentou-se, escutando.
- Não vales nada, não sabes fazer nada. É o jantar atrasado, é a roupa por passar, a louça por lavar…
Nesse momento Cláudia agradeceu o facto de os seus dois filhos estarem na escola.
- Sim, o meu filho tem razão. – Disse a sogra de Cláudia. – Você não é mulher, não é nada. Devia estar agradecida por o meu filho estar consigo, mais ninguém lhe pegava.
Nesse momento sentiu o sangue a ferver.
- Chega. Esta é a minha casa, paga com o meu dinheiro e o dos meus pais. Nada aqui é vosso, por isso partam.
Nesse momento o sogro disse alguns impropérios e o marido deu uma chapada a Cláudia.
- Se estás farta, parte. Mas não levas nada, nem os nossos filhos. Esta casa é minha, porra.
Cláudia, sentindo-se ameaçada, foi para o quarto. Não chorou, pois já estava acostumada a sofrer. Mas um sentimento lhe pesava: medo. Medo de perder os seus filhos. Podia perder tudo, mas ficar sem os filhos não. O marido nem lhes ligava, mal dava por eles e pelas suas tarefas. Era Cláudia quem os ajudava nas tarefas escolares, quem fazia tudo por eles. Tinha de sair. Não sabia como, mas tinha de o fazer. Com a ajuda dos pais? O pai era um homem cordial que nunca lhe tinha levantado a mão. A mãe, nervosa e controladora, se a ajudasse era para lhe mandar na vida. O casamento havia sido a sua fuga. Agora, era a sua possível morte. Não podia pedir ajuda a eles. Quem sabe alguma amiga no trabalho a ajudava?
Pensando nisso, limpou as lágrimas. Os seus filhos estavam quase a chegar da escola. Queria estar bem para eles. Também tinha uma réstia de esperança no seu coração, que a levava a sentir-se melhor.
O fim de semana passou sem mais chatices. Domingo à tarde os seus sogros partiram para a terra deles, finalmente. Cláudia sentiu-se melhor, com a saída deles. Sensação que durou pouco tempo. Depois de eles saírem o marido, bêbado, exigiu relações sexuais. Cláudia disse que não, que não sentia vontade.
- Quer tu sintas vontade ou não, vamos fazer. Eu quero e pronto. Está nas obrigações da esposa, nos ritos religiosos. Uma esposa deve obedecer ao marido. – Disse Hélder, o marido.
- Em que anos vives tu, em 1964? – Disse Cláudia.
A resposta de Hélder foi uma chapada bem forte à mulher, em que esta bateu com a cabeça na parede, levando-a quase a desmaiar. Os filhos, assustados, foram ver o que se passavam. Viram a mãe a ser levada em ombros pelo pai para o seu quarto. Lá, Hélder trancou o quarto. Cláudia sentia que estava a assistir à sua própria violação. Não se sentia na sua pessoa, mas como uma observante. Quando ele acabou e se virou para o lado, adormecendo, ela roubou-lhe a chave quarto e, vestida apenas com um robe, foi ver como estavam os seus filhos. Esfomeados, tinham atacado uma caixa de bolachas que Cláudia tinha tentado colocar fora do alcance deles. Quando eles já jantavam, foi se lavar, finalmente. Sentia-se suja por dentro. O seu marido era um monstro, simplesmente isso.
Depois de isso, saiu da casa de banho e correu para ver os seus filhos. Estavam a acabar de jantar. Foi arranjar as suas roupas para dormir e para vestir no dia seguinte. Passou-as a ferro, antes. Deitou-os, deu-lhes um beijo de boas noites e apagou-lhes as luzes. Depois, foi passar mais roupa.
Segunda-feira chegou. Depois de preparar os filhos para a escola e os ver partir no autocarro escolar, foi para o emprego, na fábrica. Lá, desabafou com uma colega, que se dispôs de imediato a ajudá-la. E, tendo uma relação de amizade com o chefe de secção, falou do seu assunto com ele. Também se dispôs a ajudá-la, dizendo que tinha uma casa vazia na cidade que Cláudia podia usar. Cláudia aceitou, de imediato. Combinaram sair mais cedo, sem penalizações para Cláudia e para a colega, para irem buscar algo a casa, para a mudança. O seu marido saía às seis, sendo que tinham duas horas. Pegaram nalgumas roupas suas e das crianças e levaram para a nova casa.
Quase na hora de o marido sair do trabalho e as crianças chegarem, deixaram-na lá. Fariam o resto das mudanças noutro dia.
O marido chegou. Tudo normal, as crianças estavam a divertir-se, ainda, antes de fazerem os trabalhos de casa e depois de lancharem. Parecia não ter visto nada de anormal. Tomou banho, vestiu-se e saiu para o café.
Tudo correu bem. Até às dez, quando o marido, podre de bêbado, chegou a casa, esvarocido. Cláudia, sem entender o motivo do marido do marido estar assim, mandou rapidamente as crianças para a cama. O marido, esse, não dizia coisa com coisa.
- E porque tu… Hip… Não sais daqui… Hip… porque… - Dizia Hélder.
Cláudia, já depois de deitar os filhos e farta da conversa do marido, enfrentou-o.
- Mas que se passa, afinal? – Perguntou Cláudia.
- O que se passa é que és uma puta… Os vizinhos disseram-me que te viram com um homem e uma mulher a mudar coisas… Tu pensas que me abandonas, assim? Que levas os nossos filhos? Não. Só sais daqui morta.
E começou a espancar Cláudia, violentamente. Durou pouco tempo, pois ele, de tão bêbado que estava, se sentou e deixou-se dormir de imediato. Cláudia aproveitou e ligou á colega, que de imediato se pôs lá. Combinaram que o melhor a fazer era chamar a polícia, o que fizeram. Chegaram lá, e perante o estado de Cláudia, acordaram Hélder e levaram-no para a esquadra. Já Cláudia foi para o Hospital, fazer perícias. Os filhos ficaram ao cuidado da colega, que se prontificou a ajudá-la.
Depois de quatro horas no hospital, foi para casa. Já o marido ficou no posto da polícia, pois nem de pé se conseguia manter, quanto mais responder às perguntas que a polícia lhe fazia. Tudo estava bem, os seus filhos dormiam. Só a meio da manhã seguinte ficou a saber que o juiz o tinha mandado ficar na cadeia por dois dias. Tempo suficiente para Cláudia e os filhos se mudarem. Aconselharam-na a pedir ajuda a APAV, mas Cláudia recusou, pois encontrava-se protegida, achava ela.
Ao fim de dois dias, o marido saiu. Encontrou uma casa quase vazia. Cláudia tinha levado até o esquentador, a máquina de lavar, o fogão, pois a casa para onde se tinha mudado não tinha moveis. Hélder, zangado, jurou vingança…. Virou costas e pediu a um vizinho se podia ficar na casa dele. Ele acedeu, mas a esposa não. Recusou e recusou, mesmo sobre ameaça física. Não aguentava o marido, quanto mais o vizinho violento. Sim, toda a gente sabia o que se tinha passado. E todos lhes voltaram costas. Ainda mais zangado, procurou saber para onde a mulher se tinha mudado. Não lhe foi difícil saber. Chegou ao prédio onde ela estava e tocou a todas as campainhas. Todos responderam, zangados. Não se entendia nada. Algum vizinho, ingénuo, abriu a porta para ele entrar. Sem saber a porta exata, pôs-se a bater a todas as portas. Ninguém lhe abriu a porta, a não ser o tal vizinho ingénuo. Prontamente, ajudou-o a descobrir a porta da casa para onde alguém se tinha mudado, recentemente. Hélder agradeceu e, mal ele saiu de vista, arrombou a porta a pontapé. Ninguém estava em casa. Tudo o que encontrou destruiu. Nem se apercebeu nalgumas coisas. Roupas de mulher mais magra na tábua de passar a ferro, um quarto vazio, só com arrumações. Achou estranho, mas estava tão furioso que nem ligou.
Só no final do dia se veio a saber o que se havia passado. Uma estudante da universidade também se havia mudado recentemente. Tinha a casa destruída. Cláudia, essa, só podia estar agradecida por ele se ter enganado. Hélder foi preso, outra vez, e ficou em prisão preventiva. Cláudia ficou uns meses na mesma casa, até que aceitou a ajuda da APAV. Teve de deixar o emprego, mas era o melhor. Com uma excelente carta de recomendação, e com os filhos partiu para outra terra, onde esperava nunca ser encontrada por Hélder.
E tu que lês, conheces, vives ou viveste um pesadelo assim? Se sim, denuncia. Ninguém merece passar por maltratos, não está escrito em lado nenhum que o és obrigada/o.