Era uma vez um pobre rapaz a quem o avô tinha falecido. Tinha sido durante o sono.
- Coitado, podia acontecer a qualquer um. - Disse um vizinho.
Essas palavras impressionaram Ramiro, o neto. 'Qualquer um!?', pensou ele. 'Então eu também posso morrer, assim, a qualquer momento?'. Para tirar duvidas, bastava-lhe falar com os seus pais. Mas Ramiro, demasiado envergonhado para os seus nove anos, foi incapaz de verifica-lo.
Esse foi um dilema que lhe perseguiu até aos 14 anos, altura em que começou a transformar-se num homem. A partir daí acreditou que era incapaz de morrer, como qualquer outro rapaz na sua idade. Começou a perseguir raparigas e a namoriscar com elas, sem pensar no dia de amanhã.
Tinha dezasseis anos quando apanhou o primeiro susto com uma rapariga. Por pouco ela estava grávida. Mas tinha sido só um susto, que lhe ensinou que a proteção é importante.
Depois disso, foi sempre a seguir.
Interessava-lhe mais os carros que os estudos, pelo que, quando saiu, o pai pô-lo a trabalhar na sua oficina, na aldeia onde eles moravam. Havia pouco movimento, Ramiro sentia falta dos dias de escola.
- Se queres trabalhar, ficas aqui. Se queres festa, então tens de estudar. - Disse-lhe o pai.
Ramiro ficou a pensar na proposta. Para estudar precisava de melhorar as notas. Podia trabalhar de dia e estudar à noite, sem desistir de nada. Depois, na universidade desenrascava-se.
E foi assim que, aos dezanove anos, Ramiro voltou à escola. Voltou a ver os amigos de sempre, que tinham chumbado, e que faziam melhorias de nota, tal como ele.
Aos vinte e três conseguiu ir para a universidade. A vida corria-lhe bem, apesar das dificuldades. Não passava fome, mas era-lhe difícil sobrar-lhe dinheiro para festas, depois de contas pagas. Os pais não facilitavam. Só lhe davam o estritamente necessário. E o emprego não estava assim tão fácil de arranjar, pois ele tinha pouca experiência, além de ter trabalhado na oficina.
Foi aos trinta que acabou o curso. Com muita dificuldade, conseguiu. Ramiro sentia-se feliz. Já tinha uma linda companheira, planeavam casar daí a alguns anos e constituir família.
Foi quando começou.
Ramiro tinha dificuldades em dormir, advindo do trabalho imenso que fazia, como professor. Começou com pouco. Mas a sua companheira reparou que a sua falta de sono era fora do normal. Ele chegava a estar acordado até às três da manhã e a acordar às seis, três horas depois, sem qualquer vestígio de sono.
- Amor, isso não é normal. - Disse Telma, preocupada. - Devias consultar um médico.
Ramiro desvalorizou, dizendo que era um hábito que tinha apanhado da universidade, que não era nada com que se devesse preocupar. Mas tanto que a namorada insistiu que foi a um medico.
O médico indicou que isso não era normal. Que devia tomar medicação para, pelo menos, dormir 8 horas por noite. Ramiro achou um exagero, mas decidiu aceitar a medicação. Foi o seu maior erro. Foi quando os seus medos de infância voltaram.
Ramiro sonhava muito, quando começou a tomar a medicação. Sonhava que morria durante o sono. Mas, como tomava a medicação, não conseguia acordar. Quando finalmente o fazia, era de manhã.
Uma vez sonhou que morria a dormir, tal como o seu avô. Viu o seu funeral, as pessoas chorando por ele. Ramiro não podia fazer nada, apenas observar. Viu como eram atravessados pela dor, para depois esta desaparecer. Como seguiam as suas vidas e como ele ia ficando cada vez mais só, na sua cova. Ninguém o visitava mais. Nem seus pais nem sua namorada. Estava só. E, então, acordava. Estava suado. Teve esse sonho noites seguidas, fazendo-o ter medo de voltar a adormecer.
Deixou de tomar a medicação. Voltou a dormir apenas três horas por noite e acordava sempre sobressaltado, com a sensação que estava para morrer. A principio a namorada aceitou. Mas Ramiro foi ficando cada vez mais estranho. Não dizia coisa com coisa, dizia que via coisas onde elas não estavam, irritava-se com qualquer coisas, ficou mais carente, com medo de perder todos.
A namorada deixou-o. Os amigos foram abandonando-o. A família foi lhe deixando de falar. Ficou cada vez mais só, até apenas ter o trabalho. E até daí foi despedido, pois começou a ensinar aos seus alunos matéria não escolar.
Fez estudos sobre a possibilidade de vida além da morte e falava disso nas classes. Os alunos, assustados, contaram à diretora de turma, que fez queixa contra Ramiro.
Não tinha mais vida. Impedido de lecionar, pouco lhe restava a fazer naquela cidade. Mas não podia voltar para a terra dos pais, aí não tinha nada à sua espera.
Começou a ter medo de dormir. Tinha a sensação que ia morrer. Recusa-se a dormir, comia pouco. Andava de um lado para o outro no apartamento, falando consigo mesmo. Ramiro começou a enlouquecer, pouco cuidava de si, higienicamente.
Até que ela veio. Sentiu que ela vinha, tinha a certeza. A sua ex-namorada, Telma. Vinha para buscar umas coisas que se tinha esquecido. Assustou-se com o estado de Ramiro e da sua casa.
- Fizeste bem em ter vindo. - Disse Ramiro. - Estou prestes a perder a casa.
- Mas... Que se passou contigo? Porque está isto assim?
- Fui despedido. Ainda não saí de casa para tratar do desemprego, à duas semanas. Não consigo sair. Amo-te, fica comigo.
- Desculpa, mas não, tens de me deixar ir. Adeus.
E bateu com a porta, sem levar nada seu. Ramiro sentiu-se desolado. Já não sabia o que fazer. Até que viu uma sombra na parede que lhe entregava uma faca. Ele pegou na faca que estava na mesa da cozinha, à sua frente, e fez o gesto da sombra. Ele matou-se, cortando a garganta. Agora, como espírito, nunca foi mais só...
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